A interpretação fundamentalista do islã que é a religião “de fato” do reino saudita é também a base ideológica da milícia extremista.
Para entender as origens ideológicas da milícia extremista “Estado Islâmico” é necessário voltar ao ano de 1744, quando o clérigo radical Muhammad ibn Abd al-Wahhab selou uma aliança com Muhammad ibn Saud, o emir da pequena cidade de Diriyah, no deserto da Arábia.
O pacto previa que Ibn Saud protegeria e propagaria os ensinamentos de Wahhab, ao passo que este daria legitimidade religiosa ao poder daquele, e foi selado com o casamento de um filho de Ibn Saud com uma filha de Wahhab. Bem-sucedida, a aliança está na origem do que é hoje conhecido como o primeiro reino saudita, que durou de 1744 a 1818. Os descendentes de Wahhab, a família Al ash-Sheikh, é até hoje a segunda em prestígio na atual Arábia Saudita e a principal do uluma, o órgão dos sábios religiosos.
A interpretação do islã feita por Wahhab – que se baseava nos ensinamentos de um clérigo do século 14, Ibn Taymiyyah – era monoteísta, exclusivista, censora e fundamentalista. Wahhab detestava todas as formas de idolatria, como a adoração de monumentos religiosos, a crença em santos, o cultivo de superstições e as peregrinações religiosas. Ele pregava uma adoração monoteísta e livre de qualquer tipo de “inovações”.
Estudiosos disputam se a interpretação radical do conceito de takfir (a prática de declarar outro muçulmano como kafir, ou infiel – no caso do wahhabismo, qualquer um que não siga a doutrina) data do tempo de Wahhab. Mas é certo que ele foi incorporado ao wahhabismo nas suas primeiras décadas, bem como o consequente castigo de matar os kafir, violar suas esposas e filhas e confiscar suas posses. A abordagem “conversão ou morte” para os infiéis também data dos primórdios da doutrina.
Aqui, as semelhanças com a ideologia do “Estado Islâmico” já se tornam evidentes e, de fato, os livros de Al Wahhab são distribuídos nos territórios controlados pela milícia.
O primeiro reino saudita acabou em 1818, e o wahhabismo ficou limitado à sua região original, o Najd (a área central da atual Arábia Saudita). Ele voltou a ganhar força e se expandir a partir de 1901, quando um descendente de quinta geração de Muhammad ibn Saud, Abdul-Aziz Ibn Saud, começou uma campanha militar para retomar o domínio de sua família na região, o que levaria à fundação do atual Reino da Arábia Saudita, a partir dos escombros do Império Otomano.
Na sua campanha militar, Ibn Saud se aliou aos guerreiros ikhwani, basicamente beduínos que haviam se convertido ao wahhabismo. Essa aliança foi bem-sucedida e resultou nas conquistas de Najd e Hejaz, regiões que em 1932 seriam unificadas no Reino da Arábia Saudita. Mas o expansionismo dos ikhwani, que atacaram os protetorados britânicos da Transjordânia, do Iraque e do Kuwait, não tinha o apoio de Ibn Saud, pois eles se voltavam contra a potência da época, a Grã-Bretanha.
Ibn Saud queria o apoio da Grã-Bretanha. Mais tarde, quando o petróleo foi descoberto, ele queria também vender o produto para o Ocidente, especialmente os Estados Unidos. Ele também queria introduzir novidades tecnológicas no seu reino, como o telégrafo, e adotava uma abordagem menos rígida e mais pragmática em relação a outras correntes do islã, o que se chocava com os ensinamentos wahhabistas.
Já os ikhwani se opunham ao estilo modernizador, pragmático e pró-Ocidente de Ibn Saud. O conflito resultante, a Batalha de Sabilla, em 1929, acabou com a derrota dos ikhwani, que lutavam com espadas e camelos, pelas forças de Ibn Saud, que usavam metralhadoras.
Esse embate inaugurou o que seria uma contradição inerente ao Reino da Arábia Saudita: entre a modernização e ocidentalização, representada pela família real, e o puritanismo ideológico radical wahhabista, na sua condição de religião de Estado de facto. Frequentemente os religiosos wahhabi, reunidos na uluma saudita, são acusados por grupos mais radicais de advogarem uma versão corrompida do wahhabismo, deixando de lado posições originais centrais e focando na obediência à família real – servindo, assim, aos interesses da monarquia.
O “Estado Islâmico” compartilha dessa crítica e pode, assim, ser visto como um retorno às origens do wahhabismo e também como uma milícia radical na tradição dos ikhwani e, portanto, uma ameaça a todo o reino saudita.
Alexandre Schossler
Coluna Zeitgeist
Fonte: DW