Por César A. Ferreira (“Ilya Ehrenbrug”).
O conflito civil sírio forneceu-nos, inopinadamente, um retrato pungente da arrogância desmedida, e do desprezo pela percepção da realidade, dos outros, por parte da cúpula dirigente dos EUA, ou para ficarmos de acordo com a moda terminológica, com a Elite dirigente dos EUA… Falo da inesperada e tacanha opção, feita de viva voz pelo Sr. John Kerry, Secretário de Estado dos EUA, que envolve a “entrega por parte da Síria do seu arsenal de ogivas de componentes químicos para a Comunidade Internacional”, ou o equivalente disso, seja lá o que for. Apesar da correção posterior, de que o secretário havia feito antes uma consideração hipotética do que uma afirmação proposital, a chancelaria russa, que é profissional, fez na pessoa de Sergei Lavrov, um xeque mate diplomático à grande potência, oferecendo a Assad, por meio dela, Rússia, a materialização da “hipótese” norte-americana.
A entrega do arsenal dissuasivo químico por parte de Assad é improvável, posto que ele só seria viável, e ainda sim com grandes reservas, se o que entendêssemos por “Comunidade Internacional” atendesse exclusivamente pelo nome de Rússia, o que, definitivamente, não é o caso. É verdade que em vista do anúncio feito por Lavrov, o regime de Assad respondeu afirmativamente à proposta, mas, para que haja a concretização do feito são outros quinhentos, por isso, o envio do arsenal químico de Assad para a Rússia não passa no momento de um exercício de retórica. Portanto, a frase de Kerry apesar de ser reveladora de inabilidade retórica e perspicácia diplomática, de fato não possui um real efeito no desenrolar do desejo estadunidense de efetivamente realizar o ataque ao povo sírio, para favorecer em consequência os revoltosos, aliados dos seus interesses geopolíticos.
A marcha para o ataque segue, com os seus capítulos escritos já algum tempo, cujo ensaio já havíamos visto em maio, quando os rebeldes sírios atacaram com uso de gás Sarin, posições defensivas do governo em Aleppo. O referido ensaio, no entanto, teve o seu discurso de vitimização destruído pelo relatório da Investigadora da ONU, Carla Del Ponte, que disse com todas as palavras: “indicam com toda a evidência que o gás neuroparalítico sarin foi usado por militantes da oposição síria”… Agora, apressa-se a dizer os EUA, que possuem devastadoras provas, que seriam incriminadoras da intenção do regime de lançar, naquele local específico, um ataque químico. Fica a pergunta, igualmente devastadora: Por que não avisaram ao mundo, e ao povo sírio, a intenção descoberta do regime em atacar com uso de gás Sarin? A vida das vítimas não valia a oportunidade do ganho político? Vá saber…
Fato é que existe hoje uma forte aceitação, fruto de declarações advindas dos próprios rebeldes, coadjuvado pela lógica, que o referido ataque deu-se pelas mãos dos rebelados e pior, fruto de uma inabilidade em manuseá-lo… Não é de hoje, aliás, que a ANNA, agência de notícias da Abkhásia revela túneis e abrigos com componentes químicos provindos da Arábia Saudita. Pode-se argumentar que esses achados seriam montagens do serviço de inteligência do regime, no entanto, essa argumentação não joga por terra as conhecidas movimentações do Príncipe Bandar Bin Sultan, cabeça da inteligência saudita, e articulador das ajudas aos grupos rebeldes sírios, em especial, da Al-Nusra, aquinhoadíssima no rol dos recursos bélicos entre os grupos insurgentes. O governo sírio jogou com o tempo, e agora, em um momento em que a revolta não causa fervor em ninguém, mas sim cansaço da guerra, começa a ganhar terreno e obter vitórias militares importantes. Bandar Bin Sultan, sem fazer segredo, jogou com os rebeldes a carta do “ataque químico”… Algo bem previsível.
A previsibilidade deste ataque se dava aos olhos dos mais simples observadores deste conflito, conquanto que tivessem a informação mínima, do que efetivamente estava a ocorrer. Com as forças de Assad sobrepujando os grupos de terror armado, Bandar precisava trazer a relutante superpotência para a participação efetiva no jogo, afinal, tudo estava a se perder… Para isso, a declaração infeliz de Obama sobre a “linha vermelha” do ataque com gases neurotóxicos, que não poderia ser “atravessada”, servia como senha, ou isca, bastando para isso executar a ação.
O único fator capaz de evitar o ataque, portanto, seria de ordem política. E da política interna norte-americana. Além da oposição popular, cujo peso é menor, para não dizer insignificante, existe a resistência dos setores econômicos alheios à indústria bélica e petrolífera, o que explica, em parte, a aparente relutância de Obama em ordenar o ataque. Afinal, não faz outro dia, estava Obama a travar uma batalha política para conseguir ampliar o limite de endividamento da União, e não faz agora muito sentido, provocar outra guerra. No entanto, sentido não é algo que conta no ambiente político norte-americano, onde o lobby das indústrias bélica e petrolífera são os mais poderosos. Além do mais, a melhor forma de trocar os estoques de Tomahawks é jogá-los nas cabeças dos outros… Todavia, se a proposta de envio de arsenais químicos de destruição em massa da Síria para a Rússia for aceita, e ataque algum for realizado, proporcionando antes de tudo ao regime de Assad uma salvaguarda para o futuro, então teremos a confirmação que existe outro conflito terrível no mundo, além da guerra civil síria: a guerra subterrânea entre lideranças do governo norte-americano e a sua afamada Central de Inteligência, pois nada há que faça Bandar, que a referida Central antes não saiba, concorda, ou manda.
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