A discussão sobre uma eventual repartição dos territórios sírio e iraquiano tem ganhado momentum entre os analistas de política internacional. Uma divisão entre curdos, sunitas e xiitas, argumentam os partidários dessa interpretação, poderia conceder maior estabilidade à região sem ter de recorrer a um governo opressor como o de Saddam. Além do mais, um Estado curdo é uma demanda antiga e parcialmente instaurada ao norte do Iraque. Tão necessário quanto admitir que a ideia de uma divisão é ousada, é reconhecer que a repartição entre curdos, sunitas e xiitas já ocorre de facto. A discussão atual é se ela deve tornar-se de jure.
Em um esforço homérico, Staffan de Mistura, enviado especial das Nações Unidas para a Síria, conseguiu implementar um cessar-fogo na Síria e criar um ambiente de negociações relativamente inclusivo – até onde as condições e interesses permitem – às forças rebeldes. Contudo, a pausa nas hostilidades é ainda muito instável. Penso em três motivos para tanto: primeiro, a desconfiança que as forças rebeldes têm em relação a Assad, que desrespeitou por diversas vezes outras tentativas prévias de cessar-fogo. Assad demandou tréguas e as respeitou somente quando estava em desvantagem militar. Como já argumentei noutra oportunidade neste mesmo espaço, sem o apoio das potências e das Nações Unidas no cumprimento dos acordos, dificilmente a trégua se estenderá. Um segundo elemento se refere à permanência de Assad. Walid al-Moallen, chanceler sírio, afirmou que a manutenção de Assad à frente do governo é uma “linha vermelha”; ponto inegociável. A oposição, que encontrou Walid dia 13/03 em Genebra, qualificou a frase como o prego no caixão das negociações. Difícil manter-se otimista nesse cenário. Finalmente, em terceiro lugar – quem sabe a variável mais significativa na equação – é a ação do Estado Islâmico. O cessar-fogo não se aplica ao combate de Bashar al-Assad e dos russos ao EI e à Frente al-Nusra. A permanência dessa linha de ataque permite que as forças do governo continuem a atacar seus opositores sob a névoa da guerra, como a Turquia tem feito em relação aos curdos ou a Rússia em relação aos próprios rebeldes. Não argumento que deveria haver um cessar-fogo com o EI, nem que não deveria, muito menos que seja possível. Apenas ressalto a instabilidade trazida por sua presença.
Dadas as circunstâncias, as apostas – ao menos as minhas – não têm sido muito altas. Quem sabe a repartição do território, mesmo que em unidades federativas como é o caso bósnio, seja uma saída interessante. É bem possível que Irã e Rússia apresentem ou apoiem eventualmente essa proposta. Se não, ao menos vale o exercício intelectual. Por isso, aqui vão algumas das possíveis consequências geopolíticas de uma eventual repartição.
Uma divisão territorial definiria esferas de influência mais claras: a parcela xiita atrelar-se-ia politicamente ao Irã, ao passo que a sunita incorporar-se-ia à patronagem saudita. Os dois Estados já se encontram em disputas proxy no Iêmen e na Síria. As milícias xiitas iraquianas, ativas no combate ao EI, já respondem à Guarda Revolucionária Iraniana, sendo um exemplo claro da influência que Teerã exerce no território. Ao norte, os curdos expandiriam sua autonomia. O estabelecimento de um Estado curdo seria, sem sombra de dúvida, uma afronta aos interesses turcos. A situação entre Ankara e os curdos tem se deteriorado desde julho de 2015. No último dia 12, 67 militantes do PKK – o Partido dos Trabalhadores do Curdistão – foram mortos ao norte do Iraque por ataques turcos. Ao contrário da violenta oposição de Erdogan, o estabelecimento de um Estado curdo tem sido visto com bons olhos por Israel, que afirmou na primeira semana de março apoiar sua criação. É bem provável que Jerusalém veja nos curdos possíveis parceiros no futuro. Em suma, a criação de um Estado curdo traria duas consequências importantes: uma oposição assertiva, quem sabe violenta, da Turquia; e uma distensão, ainda que bem limitada, a Israel. É necessário reconhecer que Jerusalém encontra-se atualmente em condições adversas. Mesmo antes da assinatura do acordo nuclear iraniano, Netanyahu já não estava em bons termos com Obama. A intervenção russa na Síria trouxe o receio de que os armamentos trazidos poderiam cair nas mãos do Hezbollah e possibilitar uma nova série de ataques. O histórico de atuação israelense em Gaza ensina que Israel quando ameaçado, ataca. Quem sabe um Curdistão possa amenizar isso. Veremos.
A divisão dos territórios poderia ainda – como dividendo adicional – frear o genocídio em andamento na região. Após um período de silêncio embaraçoso, o governo norte-americano finalmente reconheceu na semana passada (17/03) que o Estado Islâmico tem perpetrado uma limpeza étnica ao norte do Iraque contra yazidis, cristãos e xiitas. Em agosto de 2014, Washington combateu o massacre aos yazidis na província de Sinjar. Contudo, desde então a Casa Branca não dedicou mais atenção à questão. As mesmas práticas têm sido realizadas pelas milícias xiitas contra a população sunita, com o agravante de que os ataques aéreos norte-americanos contra o EI têm servido cobertura à limpeza étnica. Uma separação desses grupos em diferentes territórios poderia ajudar na estabilização política e controle da crise humanitária.
Enfim, mesmos jogadores, mesmas peças, porém com um tabuleiro mais organizado. Ignorei propositalmente condições de viabilidade, como, por exemplo, as dificuldades de realocação populacional e apoio internacional. Raramente demandas dessa natureza angariam suporte político considerável, uma vez que abrem precedente para que outros movimentos separatistas se baseiem na exceção. É um argumento importante a ser analisado. Ainda, que desenho institucional seria mais eficaz: uma federação de Presidência rotativa? Uma pergunta muito pertinente também. Quem sabe noutra oportunidade me alongo mais nas minhas conjecturas.
Diego Lopes da Silva
- Doutorando em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador do GEDES.
Imagem: Plano Brasil
Fonte: ERIS