Sugestão: Blue Eyes
Transporte Fluvial e Marítimo no Brasil
Desde 1799 vêm se apresentando idéias e projetos de integração do território brasileiro através de hidrovias. A primeira idéia de que se tem notícia foi a do cientista alemão Alexander Von Humboldt, que, ao visitar a América do Sul, anteviu que o continente poderia ser ligado de norte a sul por uma “Grande Hidrovia”, que poderia unir as bacias do Prata, Amazonas e Orinoco, esta última na Venezuela, através do canal do Cassiquiare, um canal natural entre os rios Negro e Orinoco.
Ao longo da segunda metade do século XIX, época da introdução das ferrovias no Brasil, uma sucessão de planos de viação foi apresentada aos governos, todos eles descartando as rodovias como principal instrumento de integração, e colocando ênfase nas vias férreas e na navegação fluvial e marítima como a solução para os problemas do isolamento a que ainda se viam submetidas às regiões brasileiras.
Dentre as várias propostas da época, vale ressaltar o estudo do engenheiro militar Eduardo José de Moraes, apresentado ao governo imperial em 1869, que continha ambicioso projeto de aproveitamento de vários rios brasileiros.
O seu estudo, intitulado “Navegação Interior no Brasil”, destacava as enormes potencialidades das bacias hidrográficas brasileiras, prevendo a implantação de uma ampla rede de navegação fluvial, que facilitaria as comunicações dos mais remotos pontos do país entre si, por meio da construção de canais, eclusas e outras obras de engenharia.
O Plano Moraes, como veio a ser chamado, propunha a interligação de todas as bacias hidrográficas do país a do rio Amazonas e seus afluentes, no Norte, com a do rio da Prata, no Sul, através dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai, e a desses rios com a do São Francisco, no Sudeste e Nordeste, e, finalmente, a ligação desta última bacia com a do rio Parnaíba e seus afluentes, na porção mais ocidental da atual região Nordeste.
O plano do engenheiro Moraes, a despeito de enfatizar o aproveitamento das vias interiores de navegação, preconizava, ainda, a integração do sistema fluvial com as ferrovias e com a navegação de cabotagem, por meio da construção de três grandes estradas de ferro conectando os portos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife com as bacias dos rios mencionados, tudo isso de uma forma harmônica e coordenada.
É importante registrar, ainda, que além de justificar o seu projeto como uma necessidade estratégica para a defesa nacional, argumentava o engenheiro Moraes ter o seu plano uma forte justificativa econômica porque, de acordo com suas próprias palavras, “a falta de meios fáceis de comunicação e de transportes baratos do interior para o litoral, condenaria os habitantes dessas ricas regiões a só produzirem ou extraírem os gêneros de sua indústria e cultura em limitadíssima escala, por terem diante de si uma perspectiva de preço de transporte, igualando, se não excedendo, o valor da mercadoria transportada”.
A interligação das bacias do Prata e do Amazonas se daria através de um canal de 12 quilômetros na borda do Pantanal, na chamada Serra do Aguapeí, onde nascem os rios Aguapeí e Alegre.
Estas duas bacias de fato já se conectam naturalmente nas épocas das cheias da região. A interconexão das bacias do Prata, Amazonas e Orinoco, com 9.818 quilômetros de extensão, formaria a “Grande Hidrovia”, que integraria todos os países da América do Sul, com exceção do Chile.
O significado estratégico desta hidrovia para a interiorização do desenvolvimento econômico regional é comparável ao que a Hidrovia Reno-Danúbio, iniciada por Carlos Magno e só concluída há alguns anos, representou para o continente europeu. Até a década de 1950, a economia brasileira se fundava na exportação de produtos primários, e com isso o sistema de transportes limitou-se aos transportes fluvial e ferroviário.
Com a aceleração do processo industrial na segunda metade do século XX, a política para o setor concentrou os recursos no setor rodoviário, com prejuízo para as ferrovias, especialmente na área da indústria pesada e extração mineral. Como resultado, o setor rodoviário, o mais caro depois do aéreo, movimentava no final do século mais de sessenta por cento das cargas.
Canal do Cassiquiare
Mapa do Cassiquiare elaborado com base nas observações de Alexander von Humboldt.
O canal do Cassiquiare, também designado por canal Casiquiare ou rio Cachequerique, é um canal natural com 326 km de comprimento que se desenvolve entre a margem esquerda do rio Orinoco, na Venezuela, e a margem direita do rio Negro, afluente do rio Amazonas, na fronteira entre a Venezuela e a Colômbia. O Cassiquiare interliga assim duas das mais importantes bacias hidrográficas do mundo: a do Amazonas, a maior do planeta, com de 6 200 000 km²; e a do Orinoco, a terceira maior da América do Sul, com uma área de 948 000 km².
Na sua totalidade aquelas bacias perfazem uma superfície conjunta de 7 850 000 de quilómetros quadrados, correspondentes a 44% do território da América do Sul. O canal é uma ocorrência geográfica raríssima, resultante da captura fluvial de uma bifurcação de outro curso de água, a qual faz da região do estado brasileiro do Amazonas ao nordeste dos rios Solimões e Amazonas, os estados brasileiros do Amapá e Roraima, a parte da Venezuela a leste do Orinoco e as três Guianas uma única e gigantesca ilha marítimo-fluvial.
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Integração das bacias hidrográficas do Orenoco, Amazonas e Prata
Ao longo da História diferentes povos investiram na construção de canais e demais intervenções voltadas para favorecer a navegação em seus territórios. Conforme apontam Lino, Carrasco e Costa (2008), no Egito do século XIX a.C. o faraó Senusret II já havia determinado a abertura de canal entre um tributário da foz do Nilo e o mar Vermelho. Uma nova ligação entre o Mediterrâneo e o mar Vermelho teria que aguardar até o século XIX, com a abertura do Canal de Suez.
Já os chineses construíram entre os séculos V a.C. e VII d.C. aquele que até hoje é o maior canal de navegação singular em funcionamento no mundo: o Grande Canal Pequim-Hangzhou, com extensão de quase 1.800 km. Trata-se da artéria vital da extensa rede hidroviária chinesa, a maior do mundo, com cerca de 124 mil km de vias navegáveis e 900 eclusas. Na Europa, ao final do século VIII, o imperador Carlos Magno iniciou a construção de canal para ligar os rios Reno, Meno e Danúbio, que só viria a ser concluído em 1992, no âmbito da União Européia. Com 170 km e 16 eclusas, o canal Meno-Danúbio é hoje uma das hidrovias mais navegadas do mundo.
Na França destaca-se o canal Languedoc, promovido por Jean-Baptiste Colbert, a partir de projeto original de Leonardo da Vinci, ligando o rio Garonne (foz do Atlântico) ao Mediterrâneo. Já a Holanda possui a maior rede de canais proporcionalmente ao tamanho do seu território: cerca de 6.000 km de vias aquáticas para uma área de aproximadamente 41.000 km², sendo o porto de Rotterdam o mais movimentado da Europa.
Na Inglaterra merece referência a mania dos canais, entre 1770 e 1830, contribuindo para a industrialização acelerada do país.
Atualmente a Europa continental possui aproximadamente 37 mil quilômetros de hidrovias, com cerca de 700 eclusas. Nos Estados Unidos destacam-se o canal Erie, construído entre 1798 e 1825, com quase 600 km, e a Autarquia do Vale do Tennessee, criada em 1933, paradigmática ao tomar uma bacia hidrográfica inteira como área de planejamento para o desenvolvimento. Atualmente os Estados Unidos dispõem de uma das mais eficientes redes hidroviárias do mundo, com 47 mil km e 250 eclusas.
Merece referência ainda o canal do Panamá, que apesar de não estar em território estadunidense, foi construído para atender aos objetivos geopolíticos deste país, viabilizando eficiente conexão entre os oceanos Pacífico e Atlântico.
Tais exemplos internacionais deveriam servir de estímulo para o aproveitamento das potencialidades hidroviárias sul-americanas. Afinal, conforme pode ser visualizado no mapa a seguir, quando forem conectadas as bacias do Orenoco, Amazonas e Prata, serão cerca de 50 mil quilômetros de vias navegáveis integrando os países sul-americanos. Apenas o traçado principal, que inclui os rios Orenoco, Negro, Amazonas, Madeira, Mamoré, Guaporé, Paraguai, Paraná e Prata, apresenta extensão de cerca de 9.800 km.
54 • Brasília • Volume 1, nº 2, 2011 • pgs 51 – 70 • www.assecor.org.br/rbpo
Márcio Gimene de Oliveira • Integração de bacias hidrográficas e transposição da barragem de Itaipu
Duas são as intervenções principais a serem realizadas. A primeira, ligação Orenoco-Amazonas, demanda construção de canais, além de dragagem e obras de retificação relativamente simples.
Já a ligação entre as bacias do Amazonas e do Prata é mais complexa. Sua viabilidade foi anunciada em 1771, quando o governador da província de Mato Grosso e Cuiabá, D. Luís Pinto de Souza Coutinho, fez passar um barco de 12 remos do rio Alegre, afluente do Guaporé, ao Aguapeí, afluente do Paraguai. A travessia foi feita por terra, com uso de carro de bois. Seu sucessor, D. Luís e Albuquerque Melo Pereira e Cáceres, chegou a iniciar a abertura de canal entre os dois rios, mas a empreitada fracassou porque o nivelamento saiu errado e o canal do rio Alegre ficou muito alto. (LINO, CARRASCO e COSTA, 2008)
A expectativa de que os ajustes técnicos fossem realizados fez com que a integração entre estas três bacias continuasse em pauta no Brasil nas décadas seguintes, constando nos planos de viação de 1869, 1947, 1951 e 1973. Mais recentemente, os primeiros estudos da Corporação Andina de Fomento (CAF) e da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul americana (IIRSA) incluíram o Orenoco-Amazonas-Prata como um dos principais eixos de integração física da América do Sul. No entanto, a IIRSA posteriormente deixou de lado esta perspectiva, o mesmo ocorrendo com o brasileiro Plano Nacional de Logística e Transportes (PNLT), divulgado em 2007. A solução destas passagens está associada à construção de eclusas no chamado Complexo do Rio Madeira (formado por quatro usinas hidrelétricas: Santo Antônio, Jirau, Ribeirão e Esperança).
Como tem sido recorrente no Brasil, Santo Antônio e Jirau começaram a ser construídas em 2010 sem que sejam preparadas as eclusas, o que fará com que as obras fiquem mais caras no futuro. Trata-se de problema freqüente no Brasil, envolvendo visão de curto prazo que prioriza a geração de energia elétrica em detrimento da construção de vias navegáveis e indefinição entre o Ministério dos Transportes e o Ministério de Minas e Energia acerca da responsabilidade pelos custos de construção das eclusas. Ainda assim, mesmo que a um custo maior, a superação destes trechos é relativamente simples.
A primeira seria mediante a construção de canal entre os rios Arinos e Paraguai. Esta possibilidade é prejudicada pelo fato de a navegação do Paraguai só ser atualmente viável de Cáceres em direção ao sul. Já a segunda opção é a mais promissora, mediante a construção de canal entre os rios Alegre e Aguapé. Esta é também a alternativa preferencial, de acordo com estudo de Vasco Azevedo Neto (apud LINO, CARRASCO e COSTA, 2008). O autor aventa ainda uma alternativa B, ligando os rios Barbado e Fortuna.
É de fundamental importância a realização de estudos de viabilidade que atentem para as especificidades técnicas e financeiras envolvidas em cada uma dessas alternativas. Em trabalho de campo realizado em novembro de 2010, na cidade de Corumbá, Mato Grosso do Sul, às margens do rio Paraguai, interroguei atores locais acerca das perspectivas de integração das bacias hidrográficas sul-americanas. A resposta padrão foi que isso não aconteceria tão cedo devido à oposição de setores ditos ambientalistas. Informavam os entrevistados que mesmo as mais simples intervenções destinadas a facilitar a navegação do rio Paraguai se viam obstadas por ações no Ministério Público, exigindo complexos estudos de impacto ambiental referentes a longos trechos do rio.
Explicavam os entrevistados que o problema não era ser contra ou a favor do cuidado ambiental, até porque o transporte hidroviário é inegavelmente mais amigável ao meio-ambiente do que a alternativa rodoviária1. A questão, diziam, era que os órgãos ambientais e seus simpatizantes na sociedade civil não agiam para apontar soluções e sim para criar dificuldades em um círculo vicioso de exigências que muitas vezes serve apenas para gerar trabalhos de consultoria e correlatos.
Paulo Henrique, gerente da Hidronave South American Logistics, comenta, por exemplo, que a integração entre as bacias do Amazonas e do Prata é perfeitamente viável e necessária: “Aí se abriria um leque muito interessante. Você poderia alimentar o Amazonas. Imagina você ter uma hidrovia dessa e evitar a destruição da floresta para criar gado já que você tem gado aqui? Poderia transportar madeira de extração legal. Você começa a criar uma hipótese de desenvolvimento de toda a América do Sul.” Quanto às questões ambientais, aponta o entrevistado: “no Mississipi sim o americano destruiu os rios, acabou com várias curvas, concretou um monte de margens.”
No entanto, pergunta: “Será que nós não somos capazes de fazer canais de forma inteligente para evitar dano ambiental? Será que não existe tecnologia para isso? No Brasil nós temos uma cultura de que tudo é impossível. É óbvio que tem tecnologia. Aqui na hidrovia a gente cansa de tomar cacetada do pessoal do meio-ambiente. É sempre não, não e não. Todos nós somos técnicos, então vamos discutir tecnicamente. Nós temos que nos adequar ao rio e não o rio a nós. Qual é a realidade? Comboios menores, barcaças menores?”.
Certamente a saída passará pela adoção de comboios de tamanho reduzido e outros cuidados necessários com o meio-ambiente. Até porque existem compreensíveis incertezas sobre as conseqüências da integração entre os ecossistemas amazônico e pantaneiro, com o decorrente trânsito de espécies vivas entre os dois sistemas. Essas incertezas, no entanto, conforme apontado pelo entrevistado, são passíveis de soluções. Em havendo engajamento para encontrá-las, oportunidades únicas de utilização do transporte hidroviário poderão ser viabilizadas.
Claro que em uma visão primário-exportadora este tipo de intervenção soa despropositada, pois existem outras alternativas de escoamento já estabelecidas. A razão de ser de uma iniciativa como essa só se justifica sob o prisma da integração nacional e continental. Conforme assinalado por Myrdal (1972, p.113), “o caminho da integração internacional reside na integração nacional”.
Em outras palavras, a integração entre as bacias do Orenoco, Amazonas e Prata abre perspectivas de integração entre as cidades e países sul-americanos e de diversificação das atividades produtivas, favorecendo a criação de mercados internos robustos, e não apenas o mero escoamento de produtos de baixo valor agregado em direção a outros continentes. Controvérsia semelhante é recorrente quando se discute, por exemplo, a viabilidade da transposição da barragem de Itaipu.
22 Comments