Ricardo Carvalho
Winston Smith vivia num mundo sem história. Ou melhor, num país em que a história era reescrita inúmeras vezes de acordo com a conveniência do governo – no caso, de um partido. Empregado do Ministério da Verdade, ele era incumbido por fazer pequenas modificações no passado. Na Oceânia, a história – com “h” maiúsculo – era parte vital de um projeto de poder.
É verdade que ultrapassamos o profético 1984 de George Orwell sem ver uma bomba atômica explodir na cidade inglesa de Colchester ou mesmo a totalidade da população ser doutrinada e controlada 24 horas por dia pelas intrometidas “teletelas” – inevitável dizer que surgem algumas dúvidas sobre a segunda afirmação. Mas o vídeo divulgado pelo Ministério dos Assuntos Exteriores de Israel recentemente, que percorre de forma didática o conflito entre palestinos e judeus, provoca, no mínimo, algumas comparações com o mundo imaginado pelo escritor inglês há mais de 60 anos. O filme, com cerca de cinco minutos, é uma resposta à campanha palestina ao redor do mundo pelo reconhecimento pleno do estado árabe na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (Onu), que se reúne em 22 de setembro. A Autoridade Palestina, reconciliada com o grupo em poder da Faixa de Gaza, o Hamas, insiste na manobra para isolar Israel e os Estados Unidos diante da comunidade internacional. É certo que qualquer avanço será vetado pelos Estados Unidos. Mas também não há dúvidas de que se os palestinos conseguirem cooptar alguns pesos-pesados europeus e um número expressivo de votos, o governo israelense ficará num cenário constrangedor.
Assista ao vídeo
O filme, apresentado pelo vice-ministro Danny Ayalon – o titular da pasta é Avigdor Lieberman, fundador do partido ultranacionalista Yisrael Beitenu – é categórico. O impasse para um acordo de paz é causado, na visão de Ayalon, pelos subsequentes rechaços do povo palestino em negociar os termos de um acordo de paz com o estado judeu. O vice-ministro acusa os árabes de terem virado as costas e dito “não” a todas as propostas de reconciliação. Em algumas dessas datas, explica Ayalon, governantes israelitas chegaram a oferecer propostas que atendiam mais de 90% das demandas palestinas.
O professor do departamento de Geografia da USP, Edílson Adão Cândido da Silva, também autor de Oriente Médio: A Gênese das Fronteiras (Editora Zapt), enxerga claro objetivo político na produção. “Creio que o vídeo foi motivado por duas razões centrais. Primeiro, a declaração unilateral da Autoridade Palestina nos próximos dias, na Assembleia Geral da Onu. Segundo, Israel teme os levantes da Primavera Árabe. O caso do Egito, que forçou a retirada do embaixador israelense do país, é sintomático. A Israel parecia mais cômodo um Oriente Médio dirigido por ditadores.”
De fato, os acontecimentos que desde o início do ano colocaram as nações árabes em plena ebulição política isolaram Israel diplomaticamente. Há uma semana, uma multidão de revoltosos egípcios invadiu a embaixada israelense no Cairo e obrigou a retirada do embaixador por meio de uma operação militar. Temendo manifestações semelhantes na capital jordaniana, Amã, todo o corpo diplomático israelense foi evacuado do país na madrugada desta quinta-feira 15. O Egito e a Jordânia, que em 1967 enfrentaram os israelenses na Guerra dos Seis Dias, são os únicos representantes do mundo árabe que mantém tratados de paz com Jerusalém.
“Trata-se de uma propaganda oficial de estado que faz uma interpretação parcial e equivocada da história. Mas ela não resiste aos fatos”, defende Cândido da Silva. Ele aponta pelo menos duas narrativas feitas por Ayalon que podem ser refutadas, além de uma omissão. Primeiro: O político israelense argumenta que, em 2000, o primeiro-ministro Ehud Barak ofereceu aos árabes a devolução da Cisjordânia (chamada no vídeo de West Bank). Mas a resposta árabe teria sido um seco ‘não’, junto ao aumento de ataques terroristas em solo israelense. Só que, como explica Cândido da Silva, os israelenses ofereceram uma Cisjordânia retaliada em vários pedaços, sem continuidade territorial e mantendo os locais ocupados por assentamentos judeus sob a soberania de Israel. “Além do mais, as autoridades de Jerusalém não aceitavam o retorno dos 3,5 milhões de palestinos que deixaram a região após a criação do estado de Israel e hoje estão principalmente no Líbano e na Jordânia”. O professor da USP complementa: “Realmente Yasser Arafat não concordou com o acordo. Mas nenhum líder nacional aceitaria um tratado daqueles.”
Assista abaixo a um outro vídeo do Ministério dos Assuntos Exteriores sobre a ocupação israelense na Cisjordânia
O vídeo apresentado por Ayalon defende que a devolução da Faixa de Gaza aos palestinos em 2005 é mais um exemplo das sucessivas tentativas israelenses de chegar à paz. Há, porém, outras interpretações. “Devolver Gaza foi uma estratégia de Ariel Sharon para postergar ao máximo o que realmente interessa: a Cisjordânia. A Faixa de Gaza é um banco de areia miserável e sem perspectivas, que só existe com ajuda externa”, diz Cândido da Silva.
Outro ponto deliberadamente omitido é qualquer referência ao primeiro-ministro israelense Itzhak Rabin, assassinado nos anos 90. Rabin foi um dos articuladores dos acordos de 1993, que estabeleceu um prazo de cinco anos para a devolução da Cisjordânia. Em 1995, ele foi morto por um judeu ortodoxo. “A viúva de Rabin atribuiu a morte do marido ao clima de tensão criado por grupos críticos a qualquer concessão aos palestinos, entre eles Benjamin Netanyahu (atual primeiro-ministro). Se os líderes israelenses querem paz, porque não mencionam Rabin no vídeo?”
Se a animação do Ministério dos Assuntos Exteriores também tem como intuito ser um contraponto ao crescente sentimento anti-Israel após o início da Primavera Árabe, não faltam razões para preocupações. Além da tensão nas embaixadas no Cairo e em Amã, recentemente o governo israelense pagou a conta da truculência das forças especiais do país no episódio da Flotilha da Liberdade, em agosto do ano passado. Na ocasião, cidadãos turcos foram mortos ao tentar furar o bloqueio a Gaza. Descontente com as conclusões da Onu sobre o episódio, a Turquia expulsou o representante israelense de Ancara.
Independentemente dos sutis esquecimentos dos fatos históricos narrados pelo vice-ministro israelense, o vídeo talvez seja uma oportunidade para que os palestinos produzam narrativas semelhantes. Afinal, conforme lembra Cândido da Silva, trata-se de um povo que ocupa a região desde o século VII e que atualmente reivindica 50% do território previsto na partilha da Onu de 1947. No conflito israelense-palestino, também se luta por uma versão oficial da história.
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