O que está por trás da retórica agressiva da Coreia do Norte

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Aidan Foster-Carter

Pesquisador honorário sênior em sociologia e Coreia moderna da Universidade de Leeds

Nenhum lugar do mundo é como a Coreia do Norte, e nada se assemelha à sua retórica.

Acompanho a propaganda política de Pyongyang desde os anos 1960. É uma tarefa deprimente, avivada por um estranho sorriso irônico.

A maioria da prosa de Pyongyang é pesada e estridente. Bravatas e hipérboles, além de idolatria, são recursos comuns, exaltando ou ameaçando incessantemente.

Na era da internet, qualquer um – exceto na Coreia do Sul, que absurdamente impõe vetos – pode ler essas falas, se tiver paciência. A KCNA, agência noticiosa oficial da Coreia do Norte e o jornal diário do partido, Rodong Sinmun, estão online, em inglês e em outras línguas.

A leitura atenta desses textos abre um universo paralelo – e uma cápsula do tempo. O Pyongyang Times de hoje se parece ao dos anos 1960.

Retórica x ameaças

Ou seja, há continuidade – mas também mudança. Nos últimos 16 meses, desde que Kim Jong-un se tornou líder, após a morte de seu pai, Kim Jong-il, a Coreia do Norte elevou sua retórica.

Insultos, é claro, têm sido constantes. A Coreia do Sul já amadureceu o suficente para superá-los, mas durante anos os dois lados se chamaram entre si de marionetes ou coisas piores.

No entanto, ameaças diretas eram raras.

Em abril de 1994, durante a primeira crise nuclear, um enviado do Norte causou choque quando, durante diálogos intercoreanos, ameaçou transformar Seul, a capital do Sul, em um “mar de fogo”. Isso passou dos limites, e o enviado foi supostamente demitido.

Porém, sob o governo de Kim Jong-un, e sobretudo neste ano, frases extravagantes como essa se tornaram lugar-comum.

O Pyongyang Times inclui matérias com dizeres como: “Unidades do KPA (Exército do Povo Coreano) em compasso de espera, destruindo alvos”; “Queime os inimigos até as cinzas”; “Adolescentes prometem se unir ao Exército”.

Começaram também ameaças tolas de ataques nucleares aos EUA (os norte-coreanos não conseguem alcançar os EUA e sabem disso).

Essas hipérboles costumavam ser restritas a Kim Myong-chol, tido como o porta-voz da Coreia do Norte no Japão. Alegre pessoalmente, Kim é conhecido por suas falas raivosas – em 2006, chegou a dizer que “a guerra está chegando ao solo americano”.

Mas a própria imprensa de Pyongyang nunca falou assim, até agora. Será que Kim Jong-un contratou Kim Myong-chol?

Retórica sem precedentes

Não há precedentes para a retórica recente (momento em que o governo norte-coreano disse ter aprovado eventuais ataques nucleares contra os EUA e advertiu embaixadas a retirarem seus diplomatas de Pyongyang). Em um claro exagero, as falas lembram as campanhas do ano passado para vilanizar Lee Myung-bak, então presidente da Coreia do Sul, chamado pelo Norte de traidor e marionete dos EUA.

No início do ano passado, a KCNA divulgou manchetes como “Vamos cortar a traqueia do bando de ratos liderado por Lee Myung-bak!”.

O pretexto, falso como sempre, era de que Lee havia supostamente desrespeitado Kim Jong-il após sua morte.

A KCNA dizia que milhões de norte-coreanos irados estavam loucos para marchar ao sul para matar Lee – e três gerações de sua família, só por garantia -, sob slogans como “sangue por sangue”.

Tudo isso era tão excessivo que havia medo, assim como há hoje, de como terminaria. Mas terminou.

Em meados de 2012, a retórica anti-Lee deu lugar a críticas mais impessoais, minimizando o que havia se intensificado.

Menos feitos, mais palavras

A mudança de tom não deixa dúvidas de que se trata do trabalho de Kim Jong-un.

O “comunicado especial” de 30 março, em que o país diz que “a partir deste momento, as relações Norte-Sul serão colocadas em estado de guerra” advertia: “Saibam que, na era do marechal Kim Jong-un, o maior comandante já visto, tudo será diferente do que era no passado”.

A descrição “maior comandante já visto” deve causar estranheza para muitos. Com a imaturidade da juventude, zero de experiência militar, será ele maior do que seu avô Kim Il-sung, que lutou contra o Japão?

Claro que não. Mas Kim Jong-un tem que provar seu valor. Na ausência de feitos, ele tem que compensar com palavras.

Será que as palavras de guerra resultarão em algo real? Esse é o risco, e é preciso ser vigilante.

Mas acho que as ameaças diárias de Pyongyang são uma fantasia. O cumprimento de alguma delas seria um suicídio.

Kim Jong-un desfruta de seus confortos; ele não tem anseios de mártir. Está se divertindo como um garoto, como um jovem jogando videogame, apesar de estar brincando com fogo.

Uma pista negligenciada pode ser uma reunião militar ocorrida em 28 de março. Na ocasião, Kim Jong-un fez um “discurso histórico”, segundo a KCNA, mas nenhum detalhe foi mencionado, só o de que não foi “um encontro de operações militares”.

Os presentes eram autoridades de comunicação de todos os setores do Exército.

Então, quem é que a Coreia do Norte está mobilizando de fato? Seus propagandistas, cujo trabalho é fazer briga de palavras, e não briga real. Acho isso reconfortante.

Eles falam grosso, mas, com alguma sorte, é provavelmente o mais longe que irão.

Fonte:  BBC Brasil