Desafio Russo e a Emergência de uma Ordem Mundial Multipolar

 

Peter Mambla- Plano Brazil
Tradução E.M.Pinto

Lenin disse:

Há décadas em que nada acontece; e há semanas em que décadas acontecem.

As semanas (e meses) em que vivemos atualmente são aquelas em que décadas — de fato, séculos — estão acontecendo, onde os 500 anos de dominação ocidental estão chegando ao fim, para serem substituídos por uma ordem mundial multipolar, sendo o BRICS o exemplo mais evidente disso.

Quando o Grão-Príncipe Ivan III da Rússia desafiou a suserania tártara sobre seu povo ao recusar-se a continuar pagando tributo, ele assumiu um risco tremendo. Se fosse derrotado, os tártaros imporiam uma terrível punição ao seu povo. Se tivesse sucesso, os russos finalmente teriam se libertado do jugo mongol. Seu jogo em 1480 deu certo, marcando o início de séculos de expansão quase constante da Rússia — experimentando uma contração em 1991, mas recentemente retomando sua expansão histórica.

Os russos estão novamente tentando livrar-se de outro jugo, desta vez o jugo unipolar em vez do jugo mongol, um jugo que pesa sobre seus pescoços desde 1991. Se conseguirem desafiar com sucesso a ordem mundial unipolar, como fez seu antecessor Grão-Príncipe Ivan III com os mongóis, isso terá grandes implicações não apenas para eles, mas para o resto do mundo.

O curso da guerra na Ucrânia parece sugerir que essa grande aposta está dando certo, e com ela, o formato da futura arquitetura global. A Rússia não pode mais desafiar o Ocidente sozinha e dependerá de um equilíbrio de poderes, onde diferentes centros de poder surgem e nenhum é forte o suficiente para dominar sobre os outros, com esses centros de poder amplamente baseados em vastas áreas geográficas, ou até mesmo “civilizacionais”.

Haverá o mundo ocidental existente, composto pela Europa e pelo mundo anglo-saxão, com eles continuando como um polo, ou com a Europa se tornando um polo independente. Haverá o espaço euro-asiático, com a Rússia como líder, incluindo grande parte da antiga União Soviética, como os estados da Ásia Central. Haverá o mundo islâmico (com os xiitas iranianos e os sunitas sauditas recentemente trabalhando surpreendentemente para encerrar sua histórica rivalidade), composto pelo Oriente Médio e Norte da África.

Haverá o mundo dentro da esfera chinesa, que será principalmente a Ásia Oriental. A Índia será mais ou menos seu próprio polo, incorporando pessoas relacionadas como os bangladeshianos e os cingaleses; e a África subsaariana poderia ser um polo, mas eles teriam que ter sucesso na criação de organizações regionais bem-sucedidas antes de tentar unir partes divergentes do continente que talvez nunca tenham tido qualquer intercurso histórico. E então há o espaço geográfico sul-americano, com o Brasil como seu líder natural.

O BRICS está se expandindo para incluir Arábia Saudita, Irã, Etiópia, Egito, Emirados Árabes Unidos e Argentina. O Presidente Lula fez campanha com afinco para incluir a Argentina, um grande passo para fortalecer o polo sul-americano, mas a recente eleição de Milei provavelmente atrasará essa possibilidade. No geral, a esquerda na política brasileira é mais a favor do grande objetivo de unir a América do Sul, enquanto a direita prefere focar primeiro em questões domésticas como crime — aprender a andar (em sua visão) antes de tentar correr.

Se o BRICS representa uma remodelação da ordem mundial global depende, antes de tudo, de o desafio da Rússia à ordem mundial unipolar na Ucrânia ser bem-sucedido. Os russos parecem confiantes de que estão prestes a ter sucesso. A recente recepção triunfal de Putin nos Emirados Árabes Unidos (seguida pela Arábia Saudita) sugere que outros também estão confiantes de que os russos tiveram sucesso. O contínuo abandono do dólar americano no comércio sugere ainda a crescente prontidão de muitos para desafiar e rejeitar a ordem mundial unipolar, sugerindo até, no caso da Arábia Saudita, a possibilidade de prejudicar a hegemonia do petro-dólar dos Estados Unidos.

Estamos realmente vivendo em tempos em que décadas — séculos — estão acontecendo. O fim da história, que representou o triunfo final e a culminação da história ocidental, está sendo confundido, com várias regiões afirmando seu direito de viver de acordo com suas distintivas “civilizacionais”. A potencial vitória russa na Ucrânia promete a confirmação de uma ordem mundial multipolar, mais claramente representada na organização BRICS.