Por: Cel Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
Fracasso anunciado nas Desertas
Por Hiram Reis e Silva, Porto Alegre, RS, 26 de Novembro de 2009.
“Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam”. (Henry Ford)
– Treinamento para Travessia da ‘Lagoa dos Patos’
Às duas horas e trinta minutos, de 25 de Novembro, iniciei, na Praia da Pedreira – Parque Itapuã, a planejada ‘Travessia da Lagoa dos Patos’, com destino a Rio Grande. Como a enseada se mostrasse tranquila e sem ondas, decidi rumar direto para o Farol de Itapuã. Tão logo me afastei da praia, fui surpreendido pela força dos ventos do quadrante Norte até então barrados pelo Morro da Fortaleza.
Alterei a rota de modo a contornar cada uma das enseadas. Sob o manto da escuridão me espreitavam as pedras submersas e, por mais de uma vez, o convés sofreu com o impacto das rochas. Era difícil distinguir as praias de areia dos calhaus. O vento formava ondas que vinha de todos os lados e, com a visão dificultada pela escuridão, resolvi aportar na Praia do Sítio que fica a uns seiscentos metros a Este do Farol. Passei por ela sem avistá-la, cheguei próximo ao Farol, retornei novamente e nada.
– Praia do Sítio e Farol de Itapuã
Em 1845, com a chegada dos Imperialistas à região, os Farrapos afundaram seus brigues ‘Bento Gonçalves’ e ‘20 de Setembro’ entre a Praia do Sítio e o local onde se encontra hoje o Farol de Itapuã. Aportei no Farol de Itapuã às três horas e quinze minutos. Aguardei quase três horas o sol sair e os ventos diminuírem para transpor os umbrais da Lagoa dos Patos.
– Pedra da Argola
Às seis horas, logo depois de passar o Farol, avistei a Pedra da Argola. A enorme argola, de uns cinquenta centímetros, fixada às rochas com chumbo derretido (chumbada), fazia parte de um sistema que visava facilitar a entrada no Guaíba quando soprava o vento Norte. As embarcações faziam uso das argolas para, tracionadas através de cabos, vencer a Ponta onde se localiza, hoje, o Farol de Itapuã.
– Praia do Tigre e Praia de Fora
Contornei a Ponta de Itapuã e, ao alterar o rumo pra Este, novamente o vento forte se fez presente desta vez diretamente de proa. Passei pela Praia do Tigre e logo, em seguida, pela interminável Praia de Fora. Os dezesseis quilômetros que me separavam até a Ponta das Desertas não me permitiam visualizá-la. Não havia avistado viva alma desde que partira da Pedreira, apenas um grande cargueiro entrando no Guaíba, próximo ao Farol, dava o sinal da presença humana até ali. A solidão me encantava.
Os cágados, tomando banho de sol, impressionavam pela quantidade. O número, certamente, era justificado pela ausência de seu maior predador natural o ‘Teiú’, que barbaramente violenta os ninhos desses quelônios e come seus ovos. Devem ter uma boa visão, pois quando me aproximava dos bandos, remando, a uns trezentos metros de distância eles mergulhavam afoitamente nas águas da Lagoa.
As tainhas davam um espetáculo a parte, o número era impressionante. A área protegida, do Parque, lhes servia de abrigo e parece que elas tinham consciência disso. A água, às vezes, parecia ferver, tal o tamanho do cardume. Uma ou outra saltava na vertical, coisa que eu ainda não tinha visto, projetando seu belo e esguio corpo prateado sobre a linha do horizonte.
Remei três horas e meia até o último renque de árvores localizado a pouco mais de um quilômetro da Ponta das Desertas. Descansei meia hora, me hidratei e alimentei, telefonei para os familiares e a Equipe de Coordenação formada pelo Coronel PM Sérgio Pastl (Diretor de Ensino da Brigada Militar e experiente velejador), o Coronel Leonardo Roberto C. Araujo (Chefe da Seção de Comunicação Social do Colégio Militar de Porto Alegre – CMPA) a professora Silvana Schuller Pineda (Clube de História do CMPA) e a amiga Rosângela Maria de Vargas Schardosim.
– O caiaque oceânico ‘Cabo Horn’ e a Travessia das Desertas
Os ventos continuavam muito fortes vindos do quadrante Este, meu destino. Resolvi tentar a travessia e parti às dez horas. A margem do lado oposto não podia ser avistada e tive de me guiar pelo GPS. Havia marcado um ponto diretamente a Leste para diminuir a rota, vinte quilômetros. Em condições normais levaria em torno de quase três horas para percorrer tal percurso.
As ondas de metro e meio e o vento de proa freavam meu deslocamento, mas, mais uma vez, o caiaque de Opium se portava galhardamente. Carregado ele se tornara mais estável ainda e eu jogava o corpo para trás para evitar que enterrasse a proa nas grandes ondas. Tinha de manter a concentração na navegação, pois uma enterrada de remo um movimento inadequado poderia virá-lo. Como não avistava a margem oposta, vez por outra, tinha de me guiar pelo GPS e constatava que ia, inadvertidamente, ziguezaguendo, aumentando ainda mais o percurso.
Às onze horas confirmei, pelo GPS, que havia navegado apenas 4 quilômetros e meio. Cheguei a conclusão de que não teria condições físicas de manter aquele ritmo e a concentração durante outras três horas e meia e, se o conseguisse, estaria me sujeitando a enfrentar uma possível e indesejada mudança do tempo no meio da Travessia. Resolvi abortar a missão e retornar à minha última parada.
– Montando acampamento nas Desertas
Aproveitei, na volta, o vento de popa e as ondas, surfando. Foi um deslocamento bem mais rápido. Escolhi um lugar entre as árvores, protegido por pequenos montes de areia, protegido do vento e iniciei a limpeza da área e a montagem da barraca. Lavei a roupa e a estendi nos galhos, reparei o convés do caiaque das avarias que sofrera com Fita Crepe. Estava cansado, frustrado. Era a segunda vez que enfrentara condições adversas extremas em meus deslocamentos e a primeira que tivera que abortar.
Tinha decidido descansar e, no dia seguinte, no momento em que o vento diminuísse, tentar novamente a Travessia. Saí para observar o local, inúmeros biguás e cágados infestavam as praias e o vento continuava castigando impiedosamente. Retornei à barraca, montei o colchão de ar, e depois de me hidratar e comer massa crua, descansei um pouco.
Recebi informação da Equipe de Coordenação que a previsão para o dia seguinte era de trovoadas e ventos mais fortes ainda e fui orientado a abortar a Travessia. O Cel PM Pastl providenciou uma equipe de resgate formada pelo 1º Sgt QPM1 – João Batista Prates Pedroso, do Departamento de Ensino, e do Sd QPM2 – Evertom Haupenthal, da Escola de Bombeiros. Desmontei o acampamento e remei mais de onze quilômetros até o local onde se encontrava a viatura da PM.
– Fracasso anunciado nas Desertas
A Travessia, no seu planejamento original, contava com a presença e apoio, diretamente de bordo, de nosso caro amigo o Cel PM Pastl e seu veleiro. Teríamos o conforto de sua embarcação nos locais de parada sem a necessidade de montar acampamentos. Por problemas de saúde com familiar ele não pode nos acompanhar, mas continuou se preocupando em fazer contato com todos os elementos que, de uma forma ou de outra, poderiam nos apoiar ao longo da rota.
O sinal tinha sido claro. A missão deveria ser efetivada em outra ocasião. O enfrentamento recente com vento de cento e dez quilômetros por hora no Guaíba tinha sido outro sinal. Por teimosia, talvez, e outras condicionantes escolares, alheias à nossa vontade, tínhamos de tentar. Ano que vem pretendemos tentar novamente e continuaremos tentando até conseguir.
– E-mail do velejador Pastl
“(…) desde 1992 tenho usufruído de vivências na Lagoa dos Patos, e muitas vezes ela me vence.
Já fui náufrago nela, veranista, feliz barqueiro a diesel, feliz velejador, passei a noite de 30 de dezembro de 2006 encalhado no Banco do Vitoriano, com a Aninha e os guris. Terrível. Sofri um rebojo em 2006 (…). Ainda noutra quebrou o mastro, sorte que a dois quilômetros de São Lourenço do Sul. Noutra ocasião quebrei o motor (…) encalhei no Capão Comprido, e quase perdi um cunhado, o Valdir, afogado, que desceu no banco de areia para empurrar. Noutra, quase encalhei no Banco do Bojuru. Confesso que rezei, e cantei salmos, de tão medroso que fiquei. (…) Ainda noutra, passei dois dias encalhado (…) no Cristóvão Pereira. Noutra, 31 de dezembro de 2008, ficamos sem vento no Pontal Santo Antônio, e sem o motor (…). Depois veio um rebojo e entramos ‘voando’ em Tapes. Levamos uma hora somente para amarrar o barco no trapiche. (…) Eu sonho com a Lagoa, penso nela todos os dias, por vezes tenho medo, mas é uma cachaça.
Para hoje (25 de novembro), a Marinha expedira ‘Aviso de Mau Tempo’ na Lagoa e área Alfa, vento 7 da ‘Escala Beaufort’.
És um bravo. Enfrentaste a Lagoa. Não vamos desistir. Vamos nos fortalecer e voltar. (…) Vamos planejar o combate. Vamos voltar e aproveitar a Lagoa em melhores momentos. Ela é linda.
Selva!”
– Escala Beaufort
O almirante britânico Sir Francis Beaufort (1774-1857) criou uma escala, de 0 a 12, observando as modificações que ocorriam no aspecto do mar, em consequência da ação dos ventos. Algum tempo depois esta tabela foi adaptada para a terra.
Força | Designação | Velocidade (Km/h) | Aspecto do Mar | Influência em Terra |
7 | FORTE | 45 a 54 | Mar grosso. Vagas de até 4,8 m de altura. Espuma branca de arrebentação; o vento arranca laivos de espuma. | Movem-se as grandes árvores. É difícil andar contra o vento.
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Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)
Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
E-mail: hiramrs@terra.com.br
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