E.M.Pinto
O Hamas desempenha um papel singular como movimento palestino que combina ideologia islâmica, nacionalismo e práticas sociais. Ao mesmo tempo em que se conecta ao Eixo da Resistência Islâmica, liderado principalmente pelo Irã e por grupos como o Hezbollah, o Hamas mantém raízes próprias na luta palestina.
Para compreender sua relevância, é necessário analisar suas conexões com esse eixo, seus objetivos declarados, seus princípios ideológicos e suas organizações de cunho social.

O eixo da resistência, atualmente compostos pelas milícias iraquianas, Irã Milícias libanesas, Palestinas, Sírias e Yenemitas.
Antes de mais nada é preciso cituar que o Eixo da Resistência Islâmica constitui uma frente político-militar que busca ampliar a influência regional dos atores contrários a Israel e contestar a presença ocidental no Oriente Médio. Entre seus objetivos estratégicos estão: expandir a influência regional, enfrentar Israel, apoiar a causa palestina e reforçar a segurança dos aliados.
Dentro desse cenário, o Hamas aparece como um ator-chave, pois não apenas atua diretamente contra Israel, mas também legitima a narrativa da resistência palestina diante da comunidade muçulmana.
Seus objetivos são:
- Expandir influência regional: Aumentar presença e influência no Oriente Médio. Apoio a grupos no Líbano, Síria e Israel.
- Enfrentar Israel: Considera Israel como ameaça à segurança e aos interesses muçulmanos. Causa palestina: Apoia palestinos no conflito com Israel, fornecendo suporte político, militar e financeiro a grupos como Hamas e Hezbollah.
- Contestar influência ocidental: Fomentar a coalizão de grupos contrários aos interesses ocidentais, desafiando influência no Oriente Médio.
- Reforçar segurança própria: Buscar fortalecer segurança nacional com aliados em países vizinhos.
No plano ideológico, o Hamas nasceu em 1987, durante a Primeira Intifada, como um desdobramento da Irmandade Muçulmana em Gaza. Sua carta fundadora afirmava que a Palestina é uma terra islâmica que não pode ser negociada, cabendo aos muçulmanos defendê-la por meio da jihad.
Ainda que documentos mais recentes tenham suavizado a retórica, o princípio central permanece, a luta armada contra Israel e a defesa da Palestina como território sagrado. Esse posicionamento o insere de forma orgânica na estratégia do Eixo da Resistência, alinhando-se ao Irã e ao Hezbollah, que oferecem apoio político, militar e financeiro.
Entretanto, reduzir o Hamas apenas a uma organização armada seria simplificar sua natureza. O movimento estruturou-se como uma entidade híbrida, com uma ala militar e uma ala social. Sendo as Brigadas Izz ad-Din al-Qassam representam seu braço armado, responsável por ataques e operações contra Israel.
Por outro lado, sua dimensão social é articulada por meio da Dawah, que engloba serviços religiosos, educacionais e de assistência comunitária. O marco dessa atuação é o al-Mujama al-Islamiya (“Centro Islâmico”), fundado nos anos 1970 em Gaza, que oferecia escolas, clínicas médicas e ajuda humanitária à população local.
Esse enraizamento social permitiu ao Hamas conquistar legitimidade política e popular, principalmente em um cenário de fragilidade das instituições estatais palestinas.
Assim, o Hamas combina três papéis simultâneos, o de movimento social, partido político e organização armada. Essa tríplice dimensão o diferencia de outros grupos e lhe garante uma base sólida de apoio interno. Sua inserção no Eixo da Resistência amplia sua capacidade de ação, ao mesmo tempo em que reforça a narrativa de resistência islâmica contra Israel e contra a hegemonia ocidental no Oriente Médio.

A estrutura política do Hamas é bastante organizada e envolve setores com ações sociais, política, econômicas e militares.
Em suma, o objetivo central do Hamas pode ser compreendido a partir de sua própria declaração:
“Sob os princípios ideológicos do islamismo o Hamas promove o nacionalismo palestino em um contexto islâmico; seguindo uma política de jihad (luta armada) contra Israel.”
As origens do Hamas
A origem do Hamas não foi apenas um fenômeno isolado de resistência islâmica, mas resultado de uma tolerância estratégica israelense nos anos 1970 e 1980, que inadvertidamente fortaleceu o grupo como contrapeso à Organização para a Libertação da Palestina (OLP), culminando na atual guerra em Gaza, marcada por mais de 62 mil mortos, cerca de 50 reféns ainda em cativeiro em 26 de agosto de 2025, e negociações intermitentes que revelam intransigências mútuas. Essa dinâmica não apenas destaca falhas históricas de ambos os lados, mas também ressalta a necessidade urgente de uma solução que priorize desescalada, governança inclusiva e desmilitarização gradual para romper o ciclo de retaliações.
Para compreender as raízes do Hamas, é essencial retornar à Primeira Intifada (1987-1988), período de levantes populares palestinos contra a expansão de colonos israelenses em áreas habitadas por palestinos. Foi nesse contexto de agitação social e a consequente repressão que surgiu o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas), como uma ramificação local da Irmandade Muçulmana, uma organização islâmica fundada no Egito em 1928 com ideais de reforma social e política baseada no Islã.
O Hamas se apresentou não apenas como uma força de resistência armada, mas como provedor de serviços sociais, educação e saúde em comunidades palestinas carentes, ganhando legitimidade popular. Seu braço armado, as Brigadas Izz al-Din al-Qassam, nomeada em homenagem a um pregador sírio morto em 1935 durante uma revolta contra o mandato britânico.
As al-Qassam foram estabelecidas para conduzir operações contra alvos israelenses, misturando táticas guerrilheiras com atentados. Fontes como o Council on Foreign Relations (CFR) oferecem uma visão geral desse surgimento, destacando como o grupo se diferenciava da OLP secular ao enfatizar uma agenda islâmica, rejeitando negociações com Israel e defendendo a criação de um estado islâmico em toda a Palestina histórica.

Antes dos conflitos de outubro o Hamas possuia entre 30 mil foguetes, cerca de 30 mil homens em armas e um potencial para expansão de efetivos para algo perto de 50 mil homens em armas.
Os fundadores e primeiras lideranças do Hamas foram figuras como o Sheikh Ahmed Yassin, um clérigo paraplégico e líder espiritual, central na fundação o qual inspirou os seguidores com sua visão de jihad contra Israel. Ao lado dele, Abdel Aziz al-Rantisi, um pediatra, e Mahmoud al-Zahar, um cirurgião, formaram o núcleo dirigente. Yassin, foi assassinado por um ataque aéreo israelense em 2004, e sua morte simbolizou para o grupo a resiliência, obtendoum efeito reverso ao esperado de enfraquecimento, ao contrário, intensificou o recrutamento e a adesão de jovens ao movimento.
O Council on Foreign Relations (CFR), documenta esses líderes como arquitetos de uma estratégia que integrava caridade e militância, permitindo ao Hamas sobreviver a repressões israelenses e ganhar apoio em Gaza e na Cisjordânia.
A Turquia e o Hamas
A atuação da Turquia no apoio ao Hamas e à Irmandade Muçulmana se insere em um contexto que combina afinidades ideológicas, cálculos estratégicos e ambições diplomáticas. Sob a liderança de Recep Tayyip Erdoğan e do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), Ancara assumiu uma postura de proximidade com movimentos islamistas, em especial aqueles ligados à tradição da Irmandade Muçulmana, da qual o Hamas é o braço palestino.
Essa afinidade ideológica é central, pois Erdoğan procura se apresentar como defensor das causas islâmicas globais e como líder legítimo do mundo muçulmano, utilizando o apoio à resistência palestina como símbolo de sua posição. Nesse sentido, a Turquia não apenas expressa solidariedade retórica, mas também oferece espaço político e mediático a dirigentes da Irmandade e do Hamas, o que reforça o elo histórico e religioso entre essas correntes.
No campo estratégico, o vínculo com o Hamas fornece à Turquia instrumentos para ampliar sua influência no Oriente Médio e contrabalançar rivais regionais. Ao apoiar o movimento palestino, Ancara se coloca em oposição direta a Israel e ao Egito, país que, sob o comando de Abdel Fattah al-Sisi, reprime duramente a Irmandade Muçulmana.
Essa postura fortalece a capacidade turca de disputar espaços de poder em uma região fragmentada, ao mesmo tempo em que cria canais de pressão diplomática que podem ser acionados em momentos de negociação. Relatórios internacionais indicam ainda que redes financeiras e logísticas ligadas à Turquia facilitam o funcionamento do Hamas, muitas vezes por intermédio de ONGs ou canais humanitários, o que amplia a percepção de cumplicidade de Ancara no fortalecimento do grupo.
No âmbito diplomático, Erdoğan tem explorado a causa palestina como bandeira política de alcance internacional. Suas críticas recorrentes a Israel em fóruns globais e o acolhimento de lideranças do Hamas em território turco reforçam a imagem de Ancara como interlocutora legítima do conflito e mediadora potencial. Ao mesmo tempo, essa posição lhe rende prestígio entre simpatizantes da Irmandade Muçulmana no mundo árabe e muçulmano em geral, ao passo que alimenta tensões com os Estados Unidos, a União Europeia e outros países que classificam o Hamas como organização terrorista.
Ressalta-se que o papel da Turquia não se reduz a um simples alinhamento religioso ou moral, mas deve ser entendido como uma estratégia de poder ampla. Erdoğan utiliza a causa palestina e as redes ligadas à Irmandade Muçulmana para consolidar sua legitimidade doméstica junto ao eleitorado conservador, projetar influência regional frente a rivais como Egito, Arábia Saudita e Emirados Árabes, e se afirmar como voz proeminente no cenário islâmico.
Entretanto, essa política também cobra custos diplomáticos significativos, expondo a Turquia a críticas e desconfianças no Ocidente. Assim, o apoio a esses movimentos funciona como instrumento que reforça simultaneamente a identidade islamista do governo e a ambição geopolítica de Ancara.
O Irã e o Hamas
A relação entre o Irã e o Hamas é um dos elementos mais importantes para compreender a dinâmica do conflito em Gaza e o funcionamento do chamado “Eixo da Resistência”. Embora o Hamas tenha surgido em 1987 como uma ramificação da Irmandade Muçulmana, de orientação sunita, e o Irã seja um Estado xiita revolucionário, as diferenças religiosas nunca impediram a cooperação.
O ponto de convergência sempre foi a causa palestina e a luta contra Israel. Após os Acordos de Oslo, em 1993, rejeitados tanto por Teerã quanto pelo Hamas, a aproximação se intensificou, consolidando uma aliança estratégica que se fortaleceu ao longo das décadas.
O apoio iraniano ao Hamas se manifesta em várias frentes. Financeiramente, Teerã injetou centenas de milhões de dólares no movimento, especialmente após a vitória eleitoral do Hamas em Gaza, em 2006. No campo militar, a cooperação se traduz no fornecimento de armamentos, tecnologia de foguetes, drones e treinamento tático conduzido pela Guarda Revolucionária e pela Força Quds, muitas vezes por meio do Hezbollah no Líbano.
Politicamente, o Irã inclui o Hamas dentro do “Eixo da Resistência”, colocando-o como uma peça central em sua estratégia de contenção de Israel e dos Estados Unidos no Oriente Médio.
Apesar dessa convergência, a relação já sofreu crises. Durante a guerra civil na Síria, entre 2011 e 2017, o Hamas distanciou-se do Irã ao se recusar a apoiar o regime de Bashar al-Assad, aliado de Teerã. Esse afastamento reduziu os fluxos de ajuda, mas não encerrou a cooperação. Com o tempo, sobretudo após a ascensão de Yahya Sinwar na liderança do Hamas, o movimento voltou a estreitar laços com o Irã, reforçando a dependência de apoio externo diante do bloqueio em Gaza.
Hoje, a influência iraniana é visível no arsenal do Hamas, nos modelos de foguetes e drones empregados e nas táticas militares utilizadas, inclusive no ataque de 7 de outubro de 2023. Embora o Irã negue participação direta em operações específicas, admite abertamente o apoio político e logístico à resistência palestina. Essa estratégia atende aos seus objetivos centrais: enfraquecer Israel sem confronto direto, desgastar os Estados Unidos por meio de aliados não estatais e expandir sua influência regional, projetando-se como defensor da causa palestina acima de rivais árabes.
Ainda assim, a aliança tem limites. As diferenças sectárias continuam sendo uma barreira, e o Hamas também depende de outros financiadores, como o Catar. Além disso, em momentos de negociação internacional, especialmente nas discussões sobre o programa nuclear, o Irã pode recalibrar seu grau de envolvimento para não comprometer interesses estratégicos maiores.
Em outras palavras, relação entre o Irã e o Hamas é menos resultado de afinidades ideológicas e mais fruto de interesses pragmáticos. O Hamas ganha força militar e capacidade de resistência ao bloqueio, enquanto o Irã utiliza o movimento como uma frente de pressão contra Israel e como peça essencial no tabuleiro do “Eixo da Resistência”, que integra também Hezbollah, Houthis e milícias xiitas no Iraque e na Síria. É uma aliança marcada por tensões ocasionais, mas sustentada pela convergência de um objetivo comum, leia-se, minar a presença israelense e desafiar a ordem regional liderada por Estados Unidos e aliados árabes.
Os Houthis e o Hamas
A relação entre os Houthis (Ansar Allah, movimento xiita do Iêmen) e o Hamas (movimento sunita palestino) é um exemplo claro de como as diferenças sectárias no Oriente Médio podem ser superadas por interesses estratégicos comuns, especialmente quando o eixo de coordenação passa pelo Irã.
Os Houthis surgiram no norte do Iêmen como um grupo xiita zaidita que, a partir da década de 2000, consolidou-se como força político-militar contra o governo central iemenita e, depois de 2015, contra a coalizão liderada pela Arábia Saudita.
O Hamas, braço palestino da Irmandade Muçulmana, de matriz sunita que em termos teológicos e políticos, os separa pelas tradições distintas e até antagônicas do Islã. No entanto, ambos compartilham um inimigo comum, Israel e seus aliados regionais.
O elo entre eles é o Irã, que os integra no chamado “Eixo da Resistência”, ao lado do Hezbollah no Líbano, da Jihad Islâmica Palestina e de milícias xiitas no Iraque e Síria. O Irã fornece armamentos, treinamento e financiamento tanto aos Houthis quanto ao Hamas, criando uma rede de forças não estatais que podem operar em diferentes frentes contra Israel e contra a presença norte-americana na região.
Nos últimos anos, essa convergência ficou mais evidente. Desde o ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023, os Houthis intensificaram suas ações no Mar Vermelho, atacando navios Israelenses e dos Estados Unidos. Esses ataques tiveram duplo efeito, o de demonstrar solidariedade à causa palestina e ampliar a pressão estratégica sobre Tel Aviv e Washington, estendendo o conflito de Gaza para o plano marítimo global.
Do ponto de vista do Hamas, o apoio retórico e militar indireto dos Houthis reforça a ideia de que a luta palestina não é isolada, mas parte de uma frente regional mais ampla contra Israel. Já para os Houthis, a associação com a causa palestina fortalece sua legitimidade interna e internacional, permitindo que deixem de ser vistos apenas como uma facção iemenita e passem a se apresentar como combatentes de uma causa pan-islâmica.
Apesar disso, existem limites nessa relação. O Hamas mantém vínculos também com países sunitas como Catar e Turquia, o que não se alinha totalmente com o campo xiita dos Houthis. Além disso, o peso político e militar do Hamas é mais diretamente ligado a Israel, enquanto o dos Houthis está voltado contra a Arábia Saudita e os EUA. O ponto de convergência real é a mediação iraniana, que dá coesão ao Eixo da Resistência.
Houthis e Hamas não são aliados por identidade religiosa ou origem comum, mas por uma convergência estratégica mediada pelo Irã. Enquanto o Hamas trava a batalha contra Israel em Gaza, os Houthis ampliam a frente de combate no Mar Vermelho e no Golfo de Áden. Ambos se alimentam mutuamente de legitimidade política e simbólica, apresentando-se como braços diferentes de uma mesma resistência regional contra Israel, Arábia Saudita e Estados Unidos.
Catar e o Hamas
A relação entre o Catar e o Hamas é um dos pontos mais complexos da geopolítica do Oriente Médio, pois envolve uma mistura de apoio político, financiamento humanitário e influência diplomática, sempre equilibrando pressões de Israel, Estados Unidos e outros países árabes.
O Catar, um pequeno emirado do Golfo Pérsico governado pela família Al Thani, construiu ao longo das últimas décadas uma política externa voltada para o uso do seu imenso poder econômico, principalmente oriundo do gás natural, como instrumento de influência regional. Nesse projeto, a causa palestina sempre foi central, e o Hamas tornou-se um parceiro importante.
Desde a vitória do Hamas nas eleições legislativas palestinas de 2006 e a subsequente ruptura com a Autoridade Palestina (Fatah), o Catar passou a ser um dos principais financiadores da Faixa de Gaza. Estima-se que bilhões de dólares tenham sido enviados por Doha para pagar salários de funcionários públicos, custear ajuda humanitária, subsidiar combustível e até financiar a reconstrução de áreas destruídas por bombardeios israelenses. Muitos desses fundos foram transferidos em acordo com Israel e supervisionados pela ONU, para evitar que fossem diretamente usados em armamentos, embora críticas recorrentes acusem o Catar de indiretamente fortalecer o Hamas.
No campo político, o Catar oferece abrigo e legitimidade internacional à liderança do Hamas. Desde 2012, após deixar Damasco em meio à guerra civil síria, o braço político do movimento se instalou em Doha. Isso garantiu ao Hamas uma base diplomática no Golfo, próxima de importantes aliados como a Turquia. Para o Catar, por sua vez, esse papel de patrono do Hamas aumentou sua relevância como ator indispensável em qualquer negociação de paz envolvendo Gaza.
Nos conflitos mais recentes, como nas guerras de 2014 e 2021 e, sobretudo, após o ataque de 7 de outubro de 2023, o Catar assumiu um papel-chave como mediador nas negociações de cessar-fogo e libertação de reféns. Isso mostra a dupla face da política catariana, pois ao mesmo tempo em que financia Gaza e dá suporte político ao Hamas, mantém diálogo estreito com os Estados Unidos e até com Israel, apresentando-se como ponte diplomática.
Entretanto, essa relação não é isenta de tensões. Países como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Egito acusam o Catar de sustentar o extremismo islâmico e usar o Hamas como instrumento de influência. Já Israel e Washington, embora critiquem o fluxo de dinheiro, também reconhecem que o emirado desempenha um papel insubstituível em manter Gaza minimamente funcional e em intermediar trégua.
Pode-se dizer que o apoio do Catar ao Hamas é menos uma aliança militar e mais uma combinação de patrocínio financeiro, abrigo político e utilidade diplomática. Para o Hamas, Doha representa uma fonte vital de recursos e legitimidade internacional, já para o Catar, o movimento é uma peça de influência estratégica que projeta o pequeno emirado para além do Golfo e o coloca no centro das negociações do conflito israelo-palestino.
Israel e a origem do Hamas
Uma das controvérsias mais debatidas é o alegado papel de Israel nas origens do Hamas. Nos anos 1970 e 1980, autoridades israelenses permitiram e até incentivaram redes islamistas ligadas a Yassin, como o Mujama al-Islamiya, uma organização de caridade fundada em 1973 que operava em mesquitas, clínicas e escolas. Essa tolerância não era aleatória, via-se os islamistas como um contrapeso à OLP de Yasser Arafat, que na época era vista como a principal ameaça nacionalista.
Documentos e análises, como as do Washington Post, revelam que Israel concedeu reconhecimento oficial a entidades como o Mujama em 1979, permitindo seu crescimento enquanto suprimia grupos seculares. O Le Monde e estudos acadêmicos da Columbia University aprofundam esse debate, argumentando que, embora não haja prova de uma “criação” direta por Israel, a política de “dividir para conquistar”, baseava-se na tolerancia aos islamistas para fragmentar a unidade palestina e embora não se concentrassem num apoio direto, inadvertidamente esta estratégia fomentou o Hamas.
Críticos israelenses, como o ex-primeiro-ministro Ehud Barak, admitiram retrospectivamente que essa estratégia foi um erro grave, pois o que começou como redes sociais evoluiu para uma ameaça armada após a Intifada. Essa narrativa não absolve o Hamas de sua agência, mas ilustra como intervenções externas influenciam conflitos, reforçando a tese de que o grupo é produto de dinâmicas regionais bem mais complexas.
aralelamente a isso, os apoios e conexões externas do Hamas foram fundamentais para sua sobrevivência e expansão, transformando-o em um ator proxy em uma teia geopolítica mais ampla. Ideologicamente ancorado na Irmandade Muçulmana, o grupo recebeu e ainda recebe suporte significativo do Irã desde os anos 1990, incluindo financiamento, treinamento militar e armas, apesar das diferenças sectárias (o Hamas é sunita; o Irã, xiita). Essa aliança estratégica permite coordenação com o Hezbollah libanês, compartilhando táticas militares, treinamento, produção de armamentos, logística militar e tecnologias para produção de itens militares como armas pessoais, foguetes e túneis subterrâneos.
Nações como o Qatar, por sua vez, oferecem canais políticos e fluxos financeiros via ajuda humanitária, mediando negociações e hospedando líderes exilados como foi o caso do ex-lider Ismail Haniyeh, morto no ataque efetuado em 2024 no Irã.

As fontes de recursos do Hamas são oriundas de investimentos internacionais, contrabandos, cobranças de taxas de serviços, e apoiso diretos de Nações como Irã, Turquia e Catar (Estimativas de 2022).
Tanto o Council on Foreign Relations como o seu homólogo europeu, detalham esses vínculos, destacando os meios pelso quais o Hamas é alimentado com financiamento, suas origens e estratégias de fuga de sanções e controle, enquanto isso o Counter Extremism Project (CEP) expõe rotas de financiamento qatari, argumentando que tais apoios prolongam o conflito ao sustentar a capacidade bélica do Hamas. Sem esses recursos externos, o grupo dificilmente manteria seu controle sobre Gaza, destacando como interesses iranianos em confrontar Israel indiretamente exacerbam a instabilidade regional.
Os Conflitos
Nos anos 1990, o Hamas escalou sua violência com a popularização de atentados suicidas contra civis israelenses, uma tática que chocou o mundo e minou processos de paz como os Acordos de Oslo (1993). Exemplos incluem explosões em ônibus e locais públicos em 1994-1996, intensificadas após o assassinato do engenheiro de bombas Yahya Ayyash por Israel em 1996.
A Human Rights Watch documenta esses ataques e as retaliações israelenses, que mataram centenas e feriram milhares, criando um ciclo de vingança. Essa fase marcou o Hamas como uma organização terrorista para muitos governos ocidentais, levando a sanções e isolamento diplomático.
A Segunda Intifada (2000-2005) e os anos subsequentes intensificaram esse confronto. O Hamas liderou atentados e enfrentou repressão maciça, mas ganhou legitimidade ao vencer as eleições legislativas palestinas em 2006, com 44% dos votos. Além da sua ocupação militar forçada e os embates com a Fatah, um fator social o deu destaque, a corrupção do Fatah e a ineficácia da Autoridade Palestina são apontadas pelos observatórios internacionais como os iumpulsionadores da rápida progressão do Hamas em Gaza.
Como resultado, a ruptura com o Fatah culminou na tomada violenta de Gaza em junho de 2007, expulsando forças leais a Mahmoud Abbas. A Reuters e o United States Institute of Peace (USIP) possuem um estudo cronológico destes eventos que apesar dos alertas, foram negligenciados tanto pelas autoridades israelenses quanto pelas autoridades americanas daquela época.
Esses eventos, mostraram como o Hamas consolidou poder através de um governo paralelo, implementando leis islâmicas e construindo uma força de segurança, tudo isso, desencadeado basicamente após a retirada unilateral de Israel de Gaza em agosto-setembro de 2005, quando por ordem do gabinete do primeiro ministro israelense, removeu-se por decreto, 8 mil colonos e forças militares da região.
Este sem dúvida foi um marco que, ironicamente, fortaleceu o Hamas. A ação planejada pelo então premiê Ariel Sharon para desengajar e focar na Cisjordânia, resultou numa saída que fragilizou a governança local, criando um vácuo que o Hamas prontamente preencheu.
A Taylor & Francis analisa como essa desocupação, finalizada em 12 de setembro de 2005, mostrou-se catastrófica com o aumento diário do número de ataqeus de foguetes contra as regiões civis de Israel as quais foram respondidas com medidas de bloqueios sufocaram ainda mais a economia gazense.
Desde 2007, o controle do Hamas em Gaza envolveu expansão militar e rodadas de guerra com Israel (2008-09, 2012, 2014, 2021), com o grupo construindo túneis, foguetes e defesas. O Israel Democracy Institute (ECF) e o Council on Foreign Relations descrevem essa consolidação, marcada por repressão interna e alianças externas, transformando Gaza em um enclave armado.
Todos estes eventos culminam no ataque de 7 de outubro de 2023, o qual representou o ápice dessa escalada quando incursões coordenadas no sul de Israel resultaram em massacres em kibutzim, festivais e vilarejos, com cerca de 1200 mortos (muitos civis) e 251 sequestrados inicialmente. Estudos médicos da Lippincott e relatos da Reuters/AP confirmam esses números, e constituem-se como o gatilho para a atual guerra, com Israel invadindo Gaza para destruir o Hamas e resgatar reféns.
Hoje, 26 de agosto de 2025, a situação permanece crítica e a guerra continua, com protestos em Israel exigindo acordos para reféns ao passo que as autoridades de Gaza estimam mais de 62 mil mortos, majoritariamente civis, em meio a destruição generalizada. Cerca de 50 reféns permanecem em cativeiro, nem todos vivos, segundo estimativas israelenses.
Esforços para a paz
Desde 2023 as negociações são caracterizadas pelo rompimento dos acordos. A trégua inicial de 24-30 de novembro de 2023 (renovada até 1º de dezembro) envolveu um cessar-fogo temporário que culminou cpm a liberação de cerca de 50 reféns (mulheres, crianças), esta troca foi feita por 150 prisioneiros palestinos, e mais ajuda humanitária. Israel condicionou à devolução de reféns e alegou violações, já o Hamas exigiu “todos por todos” e mais ajuda. Implementada parcialmente, terminou em impasses.
Rodadas subsequentes em dezembro de 2023-2024 propuseram trocas faseadas, ampliação de ajuda e discussões sobre governança. Israel insistiu em desmilitarização e o Hamas rejeitou desarmamento sem garantias. Trocas parciais ocorreram, mas combates recomeçaram.
O acordo em fases de 19 de janeiro de 2025 incluiu cessar-fogo inicial, trocas escalonadas (dezenas de reféns por centenas/milhares de prisioneiros), ajuda maciça e supervisão por Egito/Qatar/EUA. Israel via como passo para enfraquecer o Hamas. O grupo aceitou a fase inicial mas manteve reivindicações políticas. O acordo mal entrou em vigor e as rupturas seguiram.
Em março-maio de 2025, Israel retomou operações alegando violações, com o Hamas culpando Israel por ataques a civis. Os combates se intensificaram encerrando o cessar-fogo.
Principas eventos envolvendo as tentativas de paz.
De lá para cá, tem-se a proposta de 18-19 de agosto de 2025, uma trégua de 60 dias mediada por Egito/Qatar, a qual envolve cessar-fogo, liberação de metade dos reféns restantes por cerca de 200 prisioneiros, ajuda massiva e conversas políticas. Em tese a proposta foi aceita pelo Hamas, porém, ainda avaliada por Israel.
Paralelamente as negociações, Israel prepara uma mobilização militar ampla. A convocação de 50-60 mil reservistas em agosto de 2025, deve-se juntar as tropas ativas das brigadas como Givati, Golani, Paraquedistas e unidades blindadas (7ª); centenas de tanques Merkava, veículos Namer; artilharia M109, MLRS; força aérea com F-15, F-16, dezenas de F-35I; drones e os sistemas defesa Iron Dome, David’s Sling sendo reposicionados. Por sua vez a marinha se prepara para uintensificar o bloqueio e as forças especiais como Sayeret Matkal estão em preparo para a ofensiva.
Toda esta operaação recebe ajuda dos EUA porém o seu resultado pode não garantir vitória rápida, ofensivas urbanas contra túneis entrincheirados, em meio a civis, são caras em vidas e politicamente sensíveis, com riscos de escalada regional, como apontam The Times e IISS. Números flutuam com perdas e reforços, dependentes de apoios externos.
Por seu lado, o Hamas evoluiu a longo do conflito se reestabelecendo em velocidaades surpreendentes, mas aqui há um pono importante, o Hamas, mesmo sendo considerado por seus apoiadores como o principal representante da resistência palestina, enfrenta enormes limitações para sustentar uma ofensiva final contra Israel com vistas à tomada e manutenção de Gaza. Vale lembrar que, desde 2007, o grupo já controla a Faixa de Gaza, e quando se fala em “ofensiva final” a ideia remete a uma escalada contra Israel ou à consolidação de poder no enclave sob bloqueio.
O Hamas não espera vencer Israel militarmente em termos convencionais, o desequilíbrio de forças é evidente. Seu objetivo estratégico está mais ligado a:
-
Sobrevivência e resistência prolongada, mantendo a sua presença em Gaza apesar das ofensivas israelenses.
-
Custo político e militar para Israel ao infligir baixas e desgaste psicológico, de modo a minar a sensação de segurança da sociedade israelense.
-
Mobilização regional, buscando provocar a reação de aliados dentro do Eixo da Resistência (Irã, Hezbollah, Houthis do Iêmen, milícias na Síria e Iraque), criando um “efeito dominó” para sobrecarregar Israel em múltiplas frentes.
-
Ganhos políticos, fortaleceno sua posição frente à Autoridade Palestina (Fatah), apresentando-se como o verdadeiro defensor da causa palestina.
De uma entidade tolerada para um ator central devido a erros estratégicos israelenses, apoios iranianos/qataris e falhas negociadoras que perpetuam a violência. Nesse contexto, a resolução do conflito parece não estar tão próxima assim dadas as fundamentações de ambos os lados, a desmilitarização do Hamas e sua exclusão da esfera política é uma exigência de Israel. Por sua vez, o Fim de Israel é a exigência do Hamas, algo que demonstra igualmente não ser passível de acordo de fato e duradouro.
Fontes
- Israeli-Palestinian Conflict, Council on Foreign Relations (CFR) [LINK]
- What is Hamas and why is it fighting with Israel in Gaza?,BBC [LINK]
- A Threshold CrossedHuman, Rights Watch [LINK]
- Israeli-Palestinian Conflict Timeline, Council on Foreign Relations (CFR), [LINK]
- Hamas and Israel: The Current Situation and Looking Ahead, Center for Strategic and International Studies (CSIS), [LINK]
- The Road to October 7: Hamas’ Long Game, Clarified, Combating Terrorism Center at West Point, [LINK]
- Israel and Hamas Conflict In Brief: Overview, U.S. Policy, and Options for Congress, Congress.gov (Library of Congress), [LINK]
- The Historical Antecedents of Hamas, International Journal of Social Science Research and Review (via ResearchGate), [LINK]
- Israel and the Occupied Palestinian Territory, Global Centre for the Responsibility to Protect, [LINK]
- EU’s top diplomat Josep Borrell accuses Israel of ‘creating’ and ‘financing’ Hamas, Le Monde, [LINK]
- Blowback: How Israel Went From Helping Create Hamas to Bombing It, The Intercept, [LINK]
- Hamas source says group agrees to latest Gaza ceasefire proposal, BBC News, [LINK]
- Hamas has one top strategy: End the war and survive, NPR, [LINK]
- Hamas: Background, Current Status, and U.S. Policy, Congress.gov (Library of Congress), [LINK]
- Timeline: War and Peace Between Israelis and Palestinians, From Oslo to Gaza, PBS (Public Broadcasting Service), [LINK]
- Netanyahu says Israel to resume Gaza negotiations to end war and free hostages, Reuters, [LINK]
- Israel demands release of all Gaza hostages, casting doubt on ceasefire proposal, BBC News, [LINK]
- Israel pounds Gaza City suburbs, vows to press on with offensive, Reuters, [LINK]