O maior acordo de aeronaves de caça da Índia corre o risco de turbulência, já que a Dassault Aviation resiste a entregar os códigos-fonte do Rafale, mesmo com a IAF lutando contra seu menor efetivo de esquadrões na história.
A Força Aérea Indiana vive uma de suas fases mais delicadas. Com apenas 31 esquadrões em operação — número que deve cair para 29 com a aposentadoria dos últimos MiG-21 — o país enfrenta o menor efetivo aéreo de sua história. Esses caças soviéticos, por décadas a espinha dorsal da defesa indiana, finalmente dão adeus, mas deixam para trás uma lacuna perigosa em um momento em que o ambiente estratégico na região nunca foi tão tenso.
É nesse cenário que Nova Délhi acelera negociações para adquirir 114 novos Rafales, em um acordo de governo para governo com a França. Se concretizado, será o maior contrato de caças da história indiana. A decisão não é apenas sobre quantidade, mas sobre sobrevivência estratégica. O Paquistão, vizinho e rival histórico, já incorporou caças J-10C de origem chinesa, armados com o temido míssil PL-15, capaz de atingir alvos a mais de 200 km de distância. E relatos dão conta de que Islamabad poderá receber até 40 J-35 furtivos, aeronaves de quinta geração que, se confirmadas, mudariam completamente o equilíbrio aéreo no subcontinente.
O Rafale, claro, não é estranho à Índia. O país já opera 36 unidades, adquiridas em 2016, que hoje estão estrategicamente posicionadas em bases próximas ao Paquistão e à China. Versátil e moderno, o caça francês é capaz de realizar desde missões de superioridade aérea até ataques de longo alcance com mísseis SCALP de 500 km e o Meteor, considerado um dos melhores mísseis ar-ar do mundo. Em abril, Nova Délhi também encomendou 26 versões navais (Rafale-M) para equipar seus porta-aviões, reforçando a doutrina de guerra em duas frentes.
Mas, por trás da corrida para fechar o contrato, existe um obstáculo que pode travar tudo: o código-fonte do Rafale. Esse “cérebro digital” controla os sistemas de missão, a integração de armas e toda a aviônica da aeronave. A França, por meio da Dassault Aviation, tem se recusado a liberar o acesso, alegando que o software reúne décadas de conhecimento sensível que não pode ser entregue a terceiros. Para Paris, abrir mão disso colocaria em risco não apenas sua soberania tecnológica, mas também o programa de exportação do Rafale em outros países.
Do lado indiano, a visão é oposta. Sem o código-fonte, o país dependeria sempre da França para adaptar seus caças. E isso fere diretamente a estratégia Atmanirbhar Bharat (“Índia Autossuficiente”), lançada pelo primeiro-ministro Narendra Modi, que busca reduzir a dependência de fornecedores estrangeiros. O objetivo é integrar sistemas desenvolvidos no país, como o míssil Astra BVR, o Rudram antirradiação e a bomba inteligente SAAW. Para a IAF, autonomia tecnológica não é apenas um sonho político: é uma necessidade vital em guerras cada vez mais definidas por software, inteligência artificial e guerra eletrônica.
A urgência ficou ainda mais clara no choque fronteiriço de maio contra o Paquistão. Em apenas alguns dias de combate intenso, a Índia teria perdido até seis caças de linha de frente, incluindo Su-30MKI, Mirage 2000 e até três Rafales. Islamabad afirma que as baixas foram causadas por seus J-10C armados com o PL-15. Essa experiência acendeu um alerta em Nova Délhi: sua superioridade aérea, antes vista como garantida, já não é tão sólida quanto parecia.
Um contrato estimado em até US$ 20 bilhões poderia adicionar seis ou sete novos esquadrões Rafale à IAF. Para os indianos, seria um salto fundamental para recuperar força numérica e manter o equilíbrio frente a vizinhos cada vez mais armados. Mas a negociação também carrega implicações mais amplas: para o Paquistão, obrigaria a acelerar sua aposta em caças chineses; para a China, exigiria redistribuir caças de quinta geração no Himalaia e reforçar sua presença no Oceano Índico; e para a própria Índia, seria a chance de reafirmar-se como potência aérea capaz de lutar em duas frentes.
No fim, a questão vai muito além de aviões. Trata-se de independência, de soberania tecnológica e da capacidade de a Índia se afirmar como protagonista no tabuleiro estratégico da Ásia. Entre aceitar as condições francesas ou pressionar por mais autonomia, Nova Délhi tem diante de si uma decisão que pode moldar não apenas sua Força Aérea, mas todo o equilíbrio de poder no Sul da Ásia até a década de 2040.