Disputa sobre calibre do canhão de novo carro de combate expõe fraturas na defesa europeia

Por Anderson Barros especial para o Plano Brasil.

O projeto franco-alemão MGCS (Main Ground Combat System), que deveria representar o futuro das forças blindadas europeias, está travado — e o motivo é, no mínimo, simbólico: não há consenso sobre o canhão que o novo tanque usará. França e Alemanha divergem justamente sobre o que define um tanque de guerra — seu poder de fogo.

Enquanto a França, por meio da KNDS, propõe o canhão ASCALON, compatível com munições de 120 mm e 140 mm, a alemã Rheinmetall quer equipar o futuro carro de combate com o canhão de 130 mm desenvolvido para o KF-51 Panther. Em abril de 2024, os ministros da Defesa dos dois países até assinaram um memorando de entendimento para tentar revitalizar o MGCS, mas deixaram essa questão — considerada central — em aberto. A promessa é que testes comparativos definam o calibre ideal.

Sistema ASCALON (Autoloaded and SCALable Outperforming guN), 120 mm (esquerda) e 140 mm (direita).

O Ministério da Defesa alemão já deixou claro que o calibre será superior ao atual 120 mm. “Ainda não foi decidido se será 130 ou 140 mm”, explicou na época. Para os alemães, o tradicional canhão de 120 mm chegou ao seu limite. Mas nem todos pensam assim.

A Itália seguiu outro caminho — e agiu com rapidez

Enquanto franceses e alemães debatem, a Itália tomou uma decisão prática. Em vez de adotar um novo calibre, decidiu modernizar o que já funciona: investiu no desenvolvimento de um novo canhão de 120 mm com tecnologia própria, apostando na continuidade do padrão OTAN e evitando os custos logísticos e operacionais de uma ruptura.

A Leonardo apresentou oficialmente o novo canhão L55 de 120 mm em 16 de julho de 2025, no campo de tiro de Cottrau, próximo a La Spezia. O sistema, totalmente financiado com recursos internos da empresa, foi demonstrado com disparos reais e agora entra em uma fase de qualificação de 12 meses com cinco protótipos. O canhão será instalado nos Panther-IT, a versão italiana do KF-51 Panther, e também é compatível com os tanques Ariete C2 atualizados e a torre HITFACT MkII (observada no KF-41 Lynx).

Novo canhão de 120mm e 55 calibres desenvolvido pela Leonardo.

A arma é projetada exclusivamente para plataformas sobre esteiras, devido ao recuo mais exigente, e incorpora tecnologias como um novo sistema de autofretagem, freio de recuo hidráulico com acumulador óleo-gás, luva térmica em compósitos e geometria otimizada. O cano, cerca de 500 kg mais pesado que o L45 anterior, oferece 5% mais velocidade inicial e vida útil estimada de 1.200 disparos, embora esse número dependa do tipo de munição — sendo o APFSDS o que mais desgasta o tubo.

Importante destacar que os canhões italianos não são mais produzidos sob licença da Alemanha, embora mantenham características compatíveis com os Rheinmetall. A Leonardo produzirá 82 dos canhões dos 132 Panther-IT previstos; os 50 restantes receberão o Rheinmetall L55A1. Essa divisão se manterá, com 50% de canos extras planejados.

Vulcano 120 mm: munição inteligente para combates do futuro

Junto ao novo canhão, a Leonardo apresentou também uma versão de 120 mm da munição guiada Vulcano — um projétil subcalibrado com alcance de até 30 km, capaz de atingir alvos fora da linha de visão direta com precisão cirúrgica. O sistema foi pensado para neutralizar sensores, antenas e óticas de alvos blindados, sistemas de defesa aérea e foguetes inimigos. Seu design modular reutiliza componentes das versões navais (76 e 127 mm) e de artilharia (155 mm), reduzindo custos e acelerando o desenvolvimento.

A Vulcano pode ser guiada por laser, infravermelho ou por engajamento cooperativo com drones e veículos terrestres. Funciona mesmo em ambientes sem GNSS, e é 100% livre de componentes ITAR — o que garante independência política na exportação. A integração inclui arquitetura digital, engajamento remoto e abertura para futuras atualizações, como homing terminal infravermelho.

Esse sistema faz parte do programa i-MBT, que transforma o tanque em uma plataforma de ataque de longo alcance, cooperativa, adaptável e digitalizada.

Panther-IT: mais do que um tanque, um vetor de transformação

O Panther-IT será produzido pela joint venture Leonardo Rheinmetall Military Vehicles (LRMV) e faz parte de um investimento de €10 bilhões para modernizar as forças blindadas italianas. Além dos tanques, o programa inclui veículos de apoio e mais de 1.000 plataformas sobre esteiras.

O Panther-IT trará o sistema de proteção ativa StrikeShield, munições Hero 120, sistemas digitais C4I, sensores de consciência situacional 360º, imagens térmicas e interface para torres não tripuladas. A base do veículo será o chassi do Leopard 2A4, com motor V12 de 1.500 hp, velocidade máxima de 70 km/h e alcance de 500 km.

Para acomodar o novo canhão L55, a torre será modificada com atuadores elétricos reforçados, especialmente no eixo de elevação, devido ao aumento de massa e à mudança no centro de gravidade.

120 mm: um padrão que ainda faz sentido

O calibre 120 mm não é apenas o presente dos MBTs ocidentais — é o produto de décadas de evolução técnica e doutrinária. Desde o L/44 alemão nos anos 1970 até os sistemas modernos do Abrams, Leclerc, Merkava, K2 Black Panther e Tipo 10 japonês, o 120 mm de alma lisa se tornou o elo comum entre os principais tanques da OTAN.

A razão é simples: versatilidade e equilíbrio. Ele combina penetração, alcance e peso manejável. Suporta munições programáveis, projéteis HE, canister, mísseis como o LAHAT e agora projéteis guiados de precisão, como o Vulcano. É compatível com carregadores automáticos ou operação manual, e está presente em toda a cadeia logística da OTAN.

Míssil anti-tanque Lahat ATGW disparado pelo cano do canhão de 120 mm.

Canhões de 130 mm e 140 mm prometem mais potência, mas exigem plataformas mais pesadas, sistemas de recuo reforçados, carregadores maiores e logística totalmente nova — o que compromete interoperabilidade e encarece operações conjuntas.

Mesmo países que estudam calibres maiores, como Coreia do Sul (K3) e Japão, ainda tratam o 120 mm como opção válida e paralela.

Mais que uma escolha técnica: uma visão de futuro

A disputa pelo calibre do MGCS vai muito além da engenharia. Ela expõe tensões reais dentro da Europa em relação à cooperação em defesa: interesses industriais distintos, doutrinas divergentes e visões estratégicas nem sempre compatíveis. Enquanto França e Alemanha tentam definir o “canhão do futuro”, a Itália avança com soluções pragmáticas, viáveis e tecnologicamente sólidas — apostando na continuidade inteligente do que já funciona.

Ao investir num canhão nacional de 120 mm, em munição guiada de longo alcance e em uma base industrial robusta, a Itália mostra que inovação não significa, necessariamente, romper com o passado — às vezes, significa evoluir sobre ele com inteligência.