Por Anderson Barros Especial para o Plano Brasil
A recente decisão do Exército dos Estados Unidos de encerrar as aquisições do M10 Booker, veículo blindado inicialmente promovido como um “tanque leve”, representa não apenas o fracasso de um programa específico, mas também evidencia problemas estruturais mais profundos nos processos de aquisição militar e na doutrina operacional dos EUA. Idealizado para prover suporte de fogo direto a unidades de infantaria leve em operações expedicionárias, o M10 Booker tornou-se um exemplo paradigmático de desalinhamento entre conceito, execução técnica e realidade estratégica.
Desenvolvimento e Objetivos Iniciais
O M10 Booker foi desenvolvido no âmbito do programa Mobile Protected Firepower (MPF), lançado oficialmente em 2015 como parte de uma iniciativa do Exército dos EUA para equipar suas brigadas de infantaria com veículos blindados leves, capazes de fornecer fogo direto contra fortificações, tropas inimigas entrincheiradas e veículos blindados leves. O objetivo era preencher uma lacuna identificada após a retirada de serviço dos M551 Sheridan e o cancelamento do Future Combat Systems — ambos predecessores conceituais fracassados.
O MPF foi concebido como um componente vital das Brigadas de Combate de Infantaria (IBCTs), unidades que historicamente operavam sem apoio blindado orgânico. O plano era dotar essas brigadas com um veículo que combinasse alta mobilidade tática, transportabilidade aérea e potência de fogo suficiente para operar em ambientes contestados, especialmente em cenários de entrada forçada ou conflitos de alta intensidade.
Contudo, o que emergiu após anos de desenvolvimento foi um veículo de 42 toneladas — o dobro do peso inicialmente previsto. Com esse volume, o Booker não apenas se tornou incompatível com o transporte aéreo tático do C-130 Hercules, como também apresentou limitações operacionais graves em cenários de rápida implantação. Na prática, o veículo exigia aeronaves como o C-17 Globemaster III para ser deslocado, o que inviabilizava sua função em operações de surpresa ou ambientes com infraestrutura restrita. Além disso, restrições atualizadas de carga do C-17 limitaram o transporte a uma única unidade por voo, reduzindo ainda mais a eficácia operacional.
Problemas de Infraestrutura e Logística
O fracasso estratégico do M10 Booker ganhou contornos físicos durante testes em Fort Campbell, base que abriga unidades de assalto aéreo de elite. O incidente foi ainda mais grave do que inicialmente reportado: oito das onze pontes da base colapsaram ou apresentaram danos estruturais sérios sob o peso do M10. Essas pontes, projetadas na era da Guerra Fria para veículos mais leves, não foram atualizadas para acomodar o aumento de peso do Booker. Engenheiros militares relataram que ao menos duas pontes cederam completamente, comprometendo setores críticos de acesso. A modernização dessas estruturas exigiria milhões de dólares e anos de obras — um investimento inviável em um programa já avaliado em US$ 1,14 bilhão, com cada unidade do M10 custando aproximadamente US$ 13,95 milhões.
Além disso, antes da entrega das unidades, o Exército falhou em realizar avaliações adequadas de mobilidade e impacto ambiental. Como resultado, outras bases — incluindo Fort Bragg, Fort Carson e Fort Johnson — também enfrentaram dificuldades logísticas e de infraestrutura para operar o M10 Booker. A plataforma, projetada para ambientes austeros, mostrou-se incapaz de coexistir com a própria infraestrutura militar existente.
Crescimento Descontrolado dos Requisitos
O programa MPF sofreu de “requirements creep”, onde adições contínuas de blindagem, eletrônicos avançados e poder de fogo aumentaram significativamente o peso e a complexidade do veículo, desviando-o de sua missão original. Alex Miller, CTO do Exército dos EUA, comentou que o Booker se tornou “uma plataforma em busca de uma guerra, um conceito em busca de doutrina e uma solução em busca de um problema”.
Esse tipo de crescimento descontrolado é sintomático de um sistema de aquisição que tenta atender simultaneamente a múltiplos stakeholders — desenvolvedores, comandantes, políticos e contratantes — sem uma coordenação clara sobre os objetivos finais. Isso não apenas aumentou os custos, como comprometeu o foco operacional da plataforma.
Aspectos Técnicos
Do ponto de vista técnico, o M10 Booker apresentava um conjunto respeitável de armamentos e sistemas. Armado com um canhão principal de 105 mm (compatível com munição padrão da OTAN), o veículo contava com carregador semiautomático, uma metralhadora coaxial de 7,62 mm e uma .50 montada no teto. Sua blindagem modular oferecia escalabilidade de proteção, e seu motor diesel de 800 cv permitia atingir até 72 km/h. A suspensão hidropneumática proporcionava estabilidade para disparos em movimento, e o sistema de sensores integrava imagens térmicas, telêmetro a laser e capacidades digitais de comando e controle em rede.
Contudo, essas vantagens técnicas foram ofuscadas pela impossibilidade do veículo cumprir sua missão original. A ausência de transportabilidade tática, combinada com seu impacto sobre a infraestrutura e sua vulnerabilidade em comparação a tanques de batalha principais como o M1 Abrams, tornaram o Booker estrategicamente obsoleto antes mesmo de sua implantação em larga escala.
Diante do cancelamento do programa pelo Exército dos EUA, há especulações de que a General Dynamics Land Systems (GDLS) possa tentar reposicionar o M10 Booker no mercado internacional como uma plataforma de tanque de batalha médio (Medium Main Battle Tank — MMBT). Essa possível reconfiguração incluiria modificações estruturais significativas, como a substituição do canhão de 105 mm por uma arma de 120 mm compatível com munição padrão OTAN, visando aumentar seu poder de fogo e torná-lo competitivo em nichos de exportação onde clientes procuram soluções mais leves e ágeis que os tanques de batalha principais tradicionais. A GDLS possui experiência nesse tipo de adaptação — como demonstrado nos derivados mais leves do Abrams — e poderia explorar a modularidade do chassi do Booker para integrar sistemas ativos de proteção, comunicações aprimoradas e melhorias de blindagem. Embora ainda não haja confirmação oficial, essa manobra comercial buscaria recuperar parte do investimento e atender a mercados com demandas por tanques intermediários, especialmente em países com terrenos restritivos ou limitações logísticas para operar veículos mais pesados como o M1 Abrams ou o Leopard 2.
Comparações Internacionais
Outras nações enfrentaram dilemas semelhantes, mas com abordagens mais eficazes. A França, por exemplo, utiliza o AMX-10RC como veículo de reconhecimento pesado, priorizando mobilidade e adaptabilidade. Já a Rússia apostou em uma família modular de blindados (como o Bumerang e o Kurganets-25), enquanto a China tem investido pesadamente em plataformas leves, como o ZTQ-15, para atuar em terrenos montanhosos e tropicais — justamente os tipos de ambientes onde o Booker deveria brilhar.
O fracasso do Booker, portanto, também destaca a defasagem doutrinária dos EUA em relação aos avanços de seus potenciais adversários e aliados.
Cancelamento e Reformas Estruturais
Com 80 unidades já entregues pela General Dynamics Land Systems, o Exército decidiu encerrar o programa, que previa inicialmente a produção de 504 blindados. Ainda não está claro o destino dos veículos já fabricados — se serão redistribuídos para a Guarda Nacional ou oferecidos a parceiros internacionais. Mas o veredito interno é definitivo: o M10 Booker não atendeu aos critérios de desempenho, custo e alinhamento doutrinário.
O cancelamento se insere em uma reforma mais ampla liderada pelo Secretário de Defesa Pete Hegseth, que propõe a transição para sistemas modulares, não tripulados e mais leves, adaptados a ambientes contestados e operações multidomínio. Entre as prioridades estão disparos de longo alcance, veículos autônomos e plataformas com capacidade de sobrevivência e interoperabilidade digital — elementos que o Booker, com toda sua sofisticação, não conseguiu incorporar de forma eficaz.
Conclusão
Mais do que um erro técnico, o M10 Booker se tornou um caso de estudo sobre como não alinhar expectativas, infraestrutura e doutrina. Seu fracasso revela um problema institucional persistente: a dificuldade dos militares dos EUA em adaptar seus processos de aquisição às exigências de um ambiente de segurança internacional que muda rapidamente. Como apontado por analistas, enquanto a ameaça de pares como China e Rússia exige agilidade, modularidade e coordenação digital, projetos como o Booker representam uma mentalidade ultrapassada da era da Guerra Fria.
A desconexão entre desenvolvimento de plataformas e realidades logísticas e operacionais é uma vulnerabilidade crítica. Sem uma reformulação profunda do ciclo de aquisição, da doutrina e da capacidade de adaptação, o risco de repetir fracassos como o do Booker permanece — um luxo que os EUA não podem mais se permitir em um cenário onde cada tonelada, cada megabyte e cada segundo contam.