Como o modelo de colonização lançou as bases para a difusão da corrupção, que seguiu encontrando terreno fértil para se manter na esfera pública, alimentada pela falta de punição e pela manutenção de elites no poder.
Quadro retrata a chegada de Pedro Álvares Cabral no Brasil
A cordialidade da elite do município de Curuzu enganou Policarpo Quaresma. No início, o personagem central da obra de Lima Barreto chegou a pensar que a intimação assinada pelo simpático presidente da Câmara era apenas uma brincadeira. Mas o documento era uma vingança. Ao se recusar a entrar no jogo da corrupção local, Policarpo se tornou alvo de represálias.
No romance de 1911, a corrupção na esfera pública não surge como fenômeno novo, mas aparece como mal característico da sociedade, o qual a República não demonstra interesse em suprir. As represálias sofridas por Policarpo escancaram o uso do patrimônio público para interesses privados.
Essa confusão tem sua origem séculos antes da publicação do romance. A ausência de distinção entre público e privado (patrimonialismo) e favorecimento de indivíduos com base nos laços familiares e de amizade (clientelismo) foram características do modelo de colonização aplicado no Brasil.
Tolerada pela Corte e ignorada pela Justiça, a corrupção encontrou, desta maneira, em solo brasileiro, condições propícias para sobreviver e se difundir na cultura do novo país durante a sua formação.
Sem uma ruptura real com as práticas patrimonialistas e clientelistas, depois das duas primeiras grandes mudanças no sistema político – a independência e a proclamação da República – a corrupção continuou ganhando terreno em instituições públicas e no cotidiano brasileiro.
“Desde a colônia, temos um Estado que nasce por concessão, no qual a instituição pública é usada em benefício próprio. A corrupção persiste no Brasil devido a essa estrutura de colonização”, diz a historiadora Denise Moura.
Plantando a semente
Diante da dificuldade de encontrar súditos dispostos a deixar o conforto da Corte em troca de aventuras no território selvagem recém-descoberto, a concessão de cargos foi o mecanismo usado por Portugal para garantir seu domínio e explorar as riquezas da nova colônia.
Para os que aceitavam vir ao Brasil, esses cargos trariam não somente prestígio social, mas, principalmente, vantagens financeiras. Durante o período colonial, o pagamento de propinas a governantes e funcionários reais era uma prática tolerada e até regulamentada por lei.
A colonização com as concessões institucionalizou na sociedade a percepção do bem público como privado. Ao ganhar um cargo público do rei, os beneficiários tornavam-se donos destes postos e, com o aval da Corte, os utilizavam para o favorecimento próprio, além de amigos e familiares.
Essas práticas foram se difundido por todo o país durante os mais de três séculos do período colonial e, com a manutenção da mesma elite no poder depois da independência do país, em 1822, elas continuaram a encontrar um terreno fértil para prosperar.
“A diferença em relação ao Antigo Regime era que a Coroa não concedia mais mercês que implicavam em gastos de dinheiro público. Ela usava apenas a moeda simbólica dos títulos de nobreza para premiar as pessoas. Mas as práticas clientelistas, ou seja, o favorecimento dos amigos à margem da lei, eram vistas pelos chefes políticos como indispensáveis para manter e conquistar apoio político”, afirma o historiador José Murilo de Carvalho.
Pouco mudou neste cenário 67 anos depois da independência, em outro grande momento da histórica política do Brasil: a proclamação da República, em 1889. De acordo com Carvalho, o patrimonialismo e o clientelismo, embora entrassem em conflito como os valores republicanos, continuaram presentes no novo sistema.
“Os valores republicanos, sobretudo a valorização da coisa pública e sua distinção da coisa privada, até hoje não foram totalmente absorvidos no Brasil por ricos ou pobres. A proclamação da República implicou mudança na forma de governo, não nos valores”, ressalta o historiador.
Fontes históricas sugerem, por exemplo, a continuidade da prática de pagamentos de propina, como no caso de concessões para construção de ferrovias durante a Primeira República.
Mesma prática, percepção diferente
Apesar da propagação de determinadas práticas, ocorreu ao longo da história uma mudança na maneira como essas ações eram vistas pela sociedade. Um exemplo seria o pagamento de propina: que foi tolerado no período colonial e que, mais tarde, passou a ser considerado corrupção. Há também uma transformação na percepção da própria corrupção em si.
De acordo com a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, a partir da década de 1880, o Império passa pela primeira vez a ser acusado por prática de corrupção, com casos sendo noticiados na imprensa. As acusações dizem respeito, porém, ao sistema – e não ao indivíduo.
A percepção da corrupção associada ao sistema predominou durante o Império e a Primeira República. Segundo Carvalho, nesta época, na visão de quem denunciava a prática, a monarquia ou a república eram corruptas por não promoverem o bem público e serem consideradas despóticas e oligárquicas.
Somente a partir de 1930 começa uma mudança neste entendimento, que culmina na alteração do seu sentido, em 1945, com a criação da União Democrática Nacional (UDN), que passou a associar a corrupção a indivíduos. Anos depois, acusações de corrupção individual resultaram na queda de Getúlio Vargas, acusado de ter criado um mar de lama no Catete.
Mesmo com a mudança de percepção, com indivíduos sendo acusados nominalmente, a corrupção continuou encontrando terreno para se manter presente na esfera pública. Essa persistência, de acordo com especialistas, se deve principalmente à impunidade.
“Outro fator que contribuiu para a situação atual, inédita no que se refere à dimensão adquirida pela corrupção, foi a tradição de impunidade dos poderosos, essa sim, presente desde a Independência, e que atribuo à fragilidade dos direitos civis. Vários privilégios protegem os poderosos, como o foro privilegiado, a prisão especial, as múltiplas possibilidade de recurso e a capacidade de contratar advogados caros”, afirma Carvalho.
Segundo Moura, a impunidade, assim como a corrupção, também faz parte da cultura brasileira e impediu o combate a essas práticas ao longo da história. A historiadora afirma que estão ocorrendo avanços nos últimos anos, mas uma verdadeira mudança ainda deve demorar para acontecer.
“A sociedade avançou muito no sentido de punir, mas não dá para varrer em poucos anos uma cultura. Não devemos esperar que a corrupção, no caso brasileiro, será suprimida da noite para o dia. Para mudar uma mentalidade são necessários séculos”, ressalta Moura.
Fonte: DW
“Negação e descrença são parte da história do Brasil”
Em entrevista à DW, historiadora debate as origens da corrupção no país e diz que brasileiros passam da euforia à depressão sem a justa medida. Para ela, elites políticas incultas favorecem discurso violento.
Protesto contra a corrupção em Brasília, em 2013, em meio aos preparativos para a Copa
O complexo sistema de desvio de verbas públicas, escancarado pela Operação Lava Jato, em março de 2014, revigorou um amplo debate sobre as origens da corrupção no país. A concepção distorcida entre privado e público esteve, mais uma vez, no cerne de uma questão antiga, mas que ainda não atingiu nenhuma resolução. A corrupção pode ser considerada um mal iniciado com a proclamação da República, em 1889?
Para a historiadora Laura de Mello e Souza, essa discussão deve incluir, também, o Brasil colonial. “Todo sistema colonial pressupõe doses variáveis de corrupção”, afirma a professora aposentada da Universidade de São Paulo e cátedra de História do Brasil na Universidade de Sorbonne, em Paris.
Em entrevista à DW, ela analisa o enriquecimento ilícito de autoridades ainda sob domínio português e a escravidão como fator decisivo para a desigualdade social brasileira.
DW: É possível dizer que corrupção endêmica que assola o país, e que expõe a contraditória relação entre público e privado, apontadas por Sérgio Buarque de Holanda e Silvio Romero, ganhou consistência ainda sob domínio português?
Laura de Mello e Souza: Todo sistema colonial pressupõe doses variáveis de corrupção. Comporta o “spoils system”: os funcionários coloniais não ganham muito, mas, em compensação, fazem negociatas vantajosas nas terras coloniais, e o poder central fecha os olhos, porque ninguém quer desempenhar funções administrativas em regiões longínquas e onde o sistema imunológico dos europeus mostra-se frágil. Dizia-se, no império português entre os séculos 16 e 18, que uma nomeação para a África equivalia a uma sentença de morte… Descontando-se o exagero, fossem franceses, ingleses, holandeses, espanhóis ou portugueses, os funcionários coloniais dos impérios europeus esperavam enriquecer nos seus postos, e a maioria enriquecia mesmo. A escravidão moderna, adotada pelos portugueses, também complica o cenário, mas não explica tudo sozinha. Ela baralha os limites do público e do privado, sendo parte constitutiva do sistema colonial do antigo regime. Mas é preciso deixar claro que ingleses e franceses traficaram escravos intensamente e construíram sua riqueza imperial sobre a escravidão.
O acirramento político crescente no Brasil tem gerado grande hostilidade em diferentes níveis: na sociedade, nas instituições democráticas, no Congresso. Essa agressividade é fruto de processos não resolvidos, como a escravidão e a baixa diminuição nos níveis de desigualdade social?
É cedo para dar explicações únicas e fechadas. Os meios de comunicação e as mídias sociais estimulam as reações violentas e as manipulam. Vivemos uma época de extrema violência. Os discursos políticos são violentos. O Brasil, com sua sociedade desigual e suas elites políticas incultas, é um espaço privilegiado para a proliferação da violência. Não me incluo, contudo, entre os que procuram razões únicas, explicações monocausais. O passado escravista obviamente não ajuda. Mas já o poderíamos ter liquidado, ou minorado seus efeitos se houvéssemos construído uma sociedade mais igual e mais educada.
Em 2018, completamos 130 anos desde que a princesa Isabel assinou a Lei Áurea. Por que evoluímos tão pouco nas relações raciais?
Considerando o ponto de vista do historiador, as mudanças não foram tão poucas assim. Hoje em dia o racismo é crime, e isso é um grande passo. Atitudes racistas são punidas com a lei. Contudo, não penso que a situação iníqua que persiste no que diz respeito aos brasileiros negros e mestiços possa ser atribuída unicamente ao racismo e à escravidão. Ela é fruto da profunda desigualdade econômica e do descaso para com políticas públicas que favoreçam as populações carentes. Sem investimento maciço na educação não se chega a uma sociedade mais igual, nem à superação do racismo à brasileira, que é extremamente sutil e incide principalmente sobre os negros e mestiços pobres.
As conquistas políticas brasileiras no período colonial tinham como artificio principal a luta armada, a revolta, restringindo a participação política a poucos cidadãos. Esse cenário de exclusão restringiu o poder a uma elite que segue dominante até hoje?
As revoltas do passado tiveram, muitas vezes, protagonismo maciçamente popular. Há guerras de índios, do sertão nordestino a Goiás. Canudos e Contestado não foram movimentos de elite. Os quilombos contavam-se às centenas em várias regiões brasileiras. Já a participação política foi extremamente restritiva, mas, apesar de não conhecer o assunto, não penso que fosse muito diferente do sistema político existente em outros estados ocidentais. Depois, a elite dominante hoje é diferente da que foi dominante em diversos momentos do passado. Essa que temos hoje pode ser comparada à da República Velha? Não penso. No Brasil há um intenso fenômeno de circulação das elites, sobretudo nas regiões mais ricas. O desalentador é que as novas elites incorporam a maior parte dos vícios e preconceitos das antigas.
Esse estigma de negação e descrença que tem acompanhado o Brasil é um fato novo na história nacional ou ele encontra diálogo no período colonial?
A negação e a descrença são fenômenos pendulares da nossa história. Somos um povo ciclotímico, passamos da euforia à depressão, sem estágio na justa medida. Ou somos o país do futuro, ou repetimos que “isso só podia acontecer no Brasil”. É uma tradição lusitana. Os portugueses reclamam o tempo todo de si mesmos. Estamos, portugueses e brasileiros, eternamente na beira do abismo. E a situação colonial não ajudou muito: o poder real sempre distante, meio inacessível, representado por funcionários que passavam um tempo na terra e iam embora, mais ricos, de preferência. O estatuto colonial traz consigo a ideia da exploração desenfreada e da terra colonial como lugar de passagem.
Fonte: DW
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