O assassinato do embaixador russo na Turquia, Andrêi Karlov, é uma ponte sinistra que une a tristeza do passado com a escuridão do presente e do futuro.
Esse ato, que, até onde sabemos foi realizado por um indivíduo isolado, lembra aqueles cometidos na era do ‘terrorismo clássico’ – do século 19 até a primeira metade do século 20.
As forças por trás disso poderiam ser vistas como ligadas às massas que despertaram no alvorecer do século 21, desafiando não só a estabilidade de Estados individuais, mas toda a ordem do próprio Oriente Médio.
Diante do estado das coisas, é importante lembrar que, mesmo em circunstâncias tão chocantes como o assassinato de um embaixador – uma pessoa cuja imunidade deve ser garantida por documentos internacionais, mas sobretudo pela lógica das relações internacionais –, é necessário deixar sempre a porta aberta ao diálogo e à regulação. Fechar as vias de comunicação seria a prova de uma onda crescente de barbárie e a rejeição das regras básicas que garantem controle na política mundial.
Ainda é muito cedo para tirar conclusões sobre o tiroteio em Ancara, mas algumas coisas já são evidentes. O Oriente Médio está profundamente desestabilizado e assim permanecerá por um longo período de tempo. Estruturas antes sólidas estão entrando em colapso, e a crise de segurança e estabilidade está afetando países que eram referência para todo o sistema regional. Os Estados que antes desempenhavam um papel de liderança no Oriente Médio, incluindo Iraque, Egito e Síria, estão sob caos e agora parece que até mesmo a Turquia enfrenta sérios problemas estruturais. Por mais brutal que tenha sido o assassinato do diplomata russo, é apenas um exemplo de problemas mais significativos na região.
Crise turca externada
O desejo de Ancara de participar ativamente da criação do futuro do Oriente Médio – e especialmente da estrutura na Síria depois que a guerra civil chegar ao fim – gerou um resultado inesperado. Em vez de espalhar a influência turca por toda a região, foi a instabilidade da região que se espalhou pela Turquia. E esses acontecimentos não estão relacionados com o fluxo de extremistas através da fronteira; a principal causa é justamente a deterioração do sistema político interno do país.
As várias crises que se observam na Turquia, incluindo o crescimento do radicalismo, os problemas dos refugiados, a escalada drástica da questão curda, a instabilidade das relações com os mais importantes parceiros estrangeiros, a alienação do segmento ocidentalizado da população e a tensão nas estruturas do Exército e do poder no país diminuem a capacidade do governo de operar com eficácia.
A intenção do presidente turco Recep Tayyip Erdogan de aumentar seu controle sobre as estruturas de poder – no qual está envolvido desde o golpe fracassado em meados deste ano – tem servido para exacerbar a tensão e a resistência interna.
Na sombra da Síria
A questão principal hoje é a evolução futura na Síria, onde a guerra civil está entrando em mais uma etapa. Por um lado, a posição do governo de Damasco se fortaleceu e ninguém mais fala seriamente sobre uma mudança de regime. Por outro, a situação é extremamente instável e não está claro como deve ser o processo político em curso. Os seguidores de Assad estão confiantes e não querem assumir compromissos. A oposição continua dividida e não está claro quem poderia ser contraponto a Assad. Aqueles que têm potencial militar não são considerados legítimos, e quase todos são são reconhecidos como terroristas. Já os moderados, praticamente deixaram de existir.
Nessas condições, é crucial que Rússia e Turquia não se encontrem em lados opostos das barricadas ideológicas, políticas e militares. Ancara tem o potencial de minar as posições de Moscou e Damasco, se assim o desejar. Um ano atrás, quando a Rússia e a Turquia estavam em desacordo após o abate de um caça russo, havia sério risco de uma guerra fria em larga escala entre os dois países. Isso teria complicado os vários problemas na Síria – e, ainda bem, não é o caso hoje. As recentes negociações entre forças especiais, líderes militares e políticos são conduzidas justamente com a meta de minimizar os riscos para ambos os lados na Síria.
Trump e o terrorismo atual
A nova administração norte-americana, que iniciará o mandato em janeiro, abrirá provavelmente uma nova era para o Oriente Médio. Pelas declarações do presidente eleito Donald Trump e de seus membros do gabinete, as prioridades americanas na Síria podem mudar drasticamente. Trump não pretende avançar com uma política de mudança de regime ou promover ideais americanos por todo o mundo.
Trump diz que pretende lutar contra os radicais islâmicos. Nos quinze anos que se seguiram ao 11 de setembro, houve muitas declarações sobre a importância de as potências mundiais trabalharem em conjunto, mas nada se concretizou na prática. Todas as nações continuaram a agir conforme interesses próprios. Seria extremamente otimista esperar agora que a confiança entre a Rússia e os EUA, ou a Rússia e a Turquia, venha a se fortalecer de forma acentuada. Mas há esperança de que, pelo menos, Moscou e Washington deixarão de ver a Síria como um campo de competição e percebam que não há troféus a serem conquistados ali.
O terrorismo contemporâneo é uma combinação de várias formas e reflete a atual sociedade, que é extremamente fragmentada, mas, ao mesmo tempo, inter-relacionada de formas bem próximas. Estamos acostumados a procurar redes underground e grupos de conspiradores. Mas, nos dias de hoje, quase qualquer coisa – um machado, uma faca, um caminhão, ou armas de fogo, que são facilmente acessíveis – pode se tornar instrumento para um ato terrorista.
Um grupo de conspiradores ou uma célula terrorista não é são mais necessários para que ataques terroristas sejam conduzidos. Muitas pessoas recorrem à internet, na qual qualquer um que simpatize com a jihad encontrará o apoio de indivíduos similares, instruções e conselhos, bem como uma ideologia bem apresentada e convincente.
O terrorista é, assim, um lobo solitário, mas também parte de uma poderosa rede global praticamente invulnerável devido à descentralização e à diversificação. A situação coloca pressão adicional sobre as forças especiais, que devem combater tanto grupos como indivíduos. E, como o próprio ato de terrorismo, suas operações devem acontecer sem fronteiras. Acontece que, enquanto os terroristas, como mostra a prática, facilmente encontram um denominador comum para além de jurisdições soberanas, aqueles que lutam contra o terror têm dificuldade em fazê-lo.
FIÓDOR LUKIANOV
Foto: aléri Charifulin / TASS – Homenagem final a Andrêi Karlov em Moscou
- Fiódor Lukianov é editor-chefe da revista Russia in Global Affairs e presidente do Conselho de Política Externa e de Defesa, um grupo independente de reflexão com sede em Moscou.
Edição: konner@planobrazil.com
Fonte: Gazeta Russa
– Cada um colhe o que semeia,
Logo, nada a reclamar, caros russos…