Defesa e ameaça: o sistema antimísseis na Europa

Base de defesa antimísseis EUA / OTAN Deveselu – Romênia

No dia 12 de maio, um novo sistema de defesa antimísseis estadunidense, parte do sistemaAegis, foi declarado operacional em Deveselu, na Romênia. Na cerimônia de inauguração, o Secretário Geral da OTAN, Jens Stoltenberg, enfatizou a importância desse novo passo para a garantia da segurança da Europa contra ameaças originárias de inimigos externos à zona euro-atlântica. Essa ameaça, segundo Stoltenberg, é real, vistos os esforços de vários países para desenvolverem e produzirem mísseis balísticos cada vez melhores.

De fato, a proliferação de mísseis tem sido reconhecida como um problema para a segurança internacional desde a década de 1980. O Irã, por exemplo, possui atualmente mísseis com alcance de até 1000 km e, a despeito do sucesso das negociações no setor nuclear em 2015, o governo iraniano tem dado continuidade ao seu programa de desenvolvimento de mísseis e está produzindo um novo dispositivo com alcance de até 2500 km, o que seria suficiente para atingir uma grande área da Europa. Outros países, como a Coreia do Norte, a Índia e o Paquistão, também estão desenvolvendo mísseis que seriam capazes de atingir o continente europeu. Mas os únicos países externos à zona euro-atlântica (com exceção da Rússia e da China) que têm, atualmente, mísseis de alcance suficiente para atingir a Europa são Israel (cujo Jericho-2 pode alcançar até 1800 km) e a Arábia Saudita (cujos CSS-2 foram adquiridos da China na década de 1980).

Pode ser, então, que o sistema antimísseis inaugurado na Romênia seja uma medida contra ameaças já antevistas, e que podem se concretizar nos próximos anos (ou décadas). Isso traduziria, por exemplo, uma postura ainda reticente por parte dos membros da OTAN em relação ao Irã, que foi encarado como um Estado problemático desde 1979, ou o temor de que a Coreia do Norte continue dando mostras de avanços no seu setor espacial. Mas o contexto atual é conducente a outro tipo de conclusão. Apesar de Stoltenberg ter declarado que o novo sistema não tem como alvo os mísseis russos, o governo de Putin, como era de se esperar, se manifestou intensamente contrário à base de Deveselu. Putin alegou que o novo sistema visa a enfraquecer o poder da Rússia, atenuando a eficiência de sua dissuasão nuclear frente ao Ocidente.

Sistema AEGIS – EUA / OTAN Deveselu – Romênia

Durante grande parte da Guerra Fria, entendia-se que a implantação de um sistema amplo de defesa antimísseis poderia atingir um nível tal de eficácia que o equilíbrio estratégico entre as grandes potências seria anulado. Sem esse equilíbrio e, portanto, sem a cautela imposta pela iminência da destruição mútua assegurada, haveria uma maior probabilidade de que uma das grandes potências lançasse um ataque surpresa contra a outra, deflagrando uma guerra nuclear de grandes proporções. Esse temor levou à assinatura do Tratado Anti-Mísseis Balísticos (Anti-Ballistic Missile Treaty – ABM), em 1972.

No entanto, as intensas mudanças internacionais da década de 1990 levaram a uma revisão dessas ideias. Em 2001, os Estados Unidos denunciaram o Tratado ABM e, em 2009, a administração Obama anunciou seu plano para a implementação do sistema de defesa antimísseis na Europa. De fato, o complexo de Deveselu é apenas a adição mais recente a esse sistema, que já conta com navios equipados com a mesma tecnologia. A próxima etapa será a construção de um novo complexo, parte do sistema Aegis, na Polônia, que deve ser concluído em 2018. Atualmente, alguns analistas sugerem que a defesa antimísseis não fragiliza de forma significativa a dissuasão nuclear; ao contrário, esses sistemas podem contribuir para a estabilidade em caso de tensões, ao concederem maior tempo de decisão e de resposta ao Estado atacado.

 

 

De qualquer forma, esses sistemas não são capazes, ainda, de interceptar os mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs) russos, fundamentais para a manutenção da dissuasão e, por conseguinte, para o equilíbrio estratégico entre as potências. E mesmo sua eficácia contra mísseis não é completa: segundo dados da Agência de Defesa de Mísseis, dos 40 testes realizados com o sistema Aegis, 7 foram malsucedidos.

Representantes do governo russo alegam, no entanto, que o sistema inaugurado na Romênia não pode ser considerado apenas um mecanismo defensivo, e que ele representa uma nova ameaça para a Rússia. Isso obrigaria o país a adotar novas medidas para garantir sua segurança, como a proposta de reativação da estação de alerta de ataques de mísseis na Crimeia.

Os avanços no sistema de defesa antimísseis vêm, de fato, em um momento delicado. As relações da Rússia com os Estados Unidos e com a OTAN sofreram um abalo substancial em 2014, após o conflito da Ucrânia e a subsequente anexação da Crimeia pela Rússia. Desde então, os dois lados têm trocado acusações, apontando dedos e declarando que os cursos de ação do outro são inaceitáveis e podem comprometer a estabilidade estratégica. De um lado, os Estados Unidos têm investido em uma maior presença militar no Leste Europeue, de outro, o governo de Putin reforça o discurso sobre a necessidade de balancear a presença estadunidense na região e retaliar contra os avanços recentes.

 

 

Essas tensões não implicam o ressurgimento da oposição entre a Rússia e os Estados Unidos como o foco central da agenda de segurança internacional. Esta é apenas uma das fontes de incerteza que podem ganhar vulto no futuro e, frente às tensões no Mar da China e à escalada do conflito no Oriente Médio, as escaramuças discursivas entre russos e americanos parecem empalidecer. Mas, em um contexto em que os dois lados dispõem de armamentos nucleares, parece melhor pecar por excesso de cautela. Portanto, se o sistema de defesa antimísseis é, de fato, percebido como crucial para a defesa da Europa, seus avanços devem ser conduzidos com cautela e muita reflexão. Afinal, não é inaudito que uma nação buscando meios de se defender melhor acabe, inadvertidamente, provocando uma guerra.

Raquel Gontijo

Raquel Gontijo é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.

Edição de vídeos e imagens: Plano Brasil

Fonte: ERIS

5 Comentários

  1. Romênia e Polônia passam a ser a justificativa para a Rússia criar novos mecanismos de dissuasão, para que se mantenha a paridade de forças entre eles e o Ocidente, logo, fica claro que bases russas próximas as fronteiras Européias serão fortalecidas, envio de sistemas de saturação e mísseis Iskander M para próximo do leste Europeu além do enclace de Kaliningrado, sistemas de alerta antecipado na Criméia, etc, a Europa deu o primeiro passo, cabe agora a Rússia responder.

  2. Pessoal…

    Primeiro de tudo: lançar um ataque nuclear seria burrice… A detonação de armas nucleares liberaria dejetos radioativos que contaminariam, além da Rússia, parcelas significativas da própria Europa… Mesmo um ataque limitado a algumas dezenas de ogivas, geraria consequências ambientais consideráveis, que afetariam todo o mundo.

    É de se esperar que a detonação de um artefato nuclear de cerca de 250 kt possa produzir danos consideráveis, com nuvens radioativas espalhando partículas por centenas de quilômetros além da área de detonação… Imaginem então ICBMS despencando dezenas de ogivas similares por vasta área…

    Só por causa disso, quem quer que seja vai pensar duas vezes em apertar o botão, no que tange a lançar qualquer coisa sobre a parcela européia da Rússia…

    Já no caso dos americanos, sua localização geográfica não permite em essência que resíduos radioativos de detonações menores cheguem com força a Europa ou Rússia, o que torna um ataque a seu território continental ( exceto Alaska ) livre de certas considerações morais da parte de quem lançar a ofensiva.

    Disso tudo parte muito da preocupação dos americanos… Isto é: os adversários em potencial teriam a possibilidade de lançar um ataque sem se preocupar com consequências em curto prazo. Já para os americanos, essa possibilidade seria muito menos apresentável, já que tem nos europeus ( agora inclusos os do leste, e que seriam os principais afetados ) seus aliados…

    • Concordo com parte da sua colocação RR, mas essa movimentação e implantação de sistemas DAM foi acompanhada de incansáveis tentativas por parte de Moscou para criarem mecanismos de trabalho conjunto, a fim de promover nos EUA sua defesa desejada e´para a Rússia, a segurança de suas capacidades de dissuasão, bem como a quebra da insegurança em relação ao propósito do sistema.
      Os EUA não aceitaram qualquer diálogo com a Rússia quanto ao sistema, criaram problemas incansáveis na Ucrânia a ponto de justificarem as injustificáveis sanções que hoje colocam a Rússia numa padronização econômica de emergência, isso sem contar com os passos na Síria, na área do Petróleo, etc, a Rússia reage por motivos bem plausíveis, cabíveis, pois a agressividade das ações norte americanas justificam os passos dados pelo Kremlim, e daqui em diante a tendencia é só piorar, pois o Kremlim precisa quebrar qualquer possível capacidade desse sistema de deter sua dissuasão nuclear, até porque, como dizem os americanos, “o sistema é para deter os mísseis iranianos”, logo, não há problema se a Rússia tentar acertar alguns pontos.

  3. “Afinal, não é inaudito que uma nação buscando meios de se defender melhor acabe, inadvertidamente, provocando uma guerra.”

    Muito interessante essa expressão… E impossível não casa-la com a Primeira Guerra Mundial, na qual uma intrincada rede de alianças visava basicamente um meio promover a segurança entre os países assinantes ao mesmo tempo em que buscava evitar um conflito… E no final, foi justamente essa aliança o fator maior pelo qual a Europa mergulhou no conflito que redefiniu a geopolítica mundial…

    Contudo, não creio que se possa aplica-la integralmente a esse escudo anti-mísseis… Se esse sistema é meramente defensivo ( não visa um ataque ao território de quem quer que seja, mas a defesa pura e simples ), então é somente mais um elemento dissuasório; uma ferramenta. Por tanto, é discutível se poderia ser ou não um fator de desequilíbrio…

    A alegação é que um sistema assim poderia permitir um ataque da parte americana sem que o outro lado possa fazer retaliação ( e que isso constituiria o fator de desequilíbrio ). Mas se considerarmos que ainda existem os SSBN e SLCM e a certeza de que nem todos podem ser localizados antes de lançarem suas armas, então a capacidade de dissuasão russa ainda existirá ( a menos que os americanos efetivamente consigam manter um SSN na cola que qualquer coisa que deixe os portos russos… ).

    As armas nucleares, de uma forma ou de outra, sempre deixam a situação muito equilibrada; ainda mais se considerarmos suas possibilidades de uso.

  4. Extraido do texto:

    “Durante grande parte da Guerra Fria, entendia-se que a implantação de um sistema amplo de defesa antimísseis poderia atingir um nível tal de eficácia que o equilíbrio estratégico entre as grandes potências seria anulado. Sem esse equilíbrio e, portanto, sem a cautela imposta pela iminência da destruição mútua assegurada, haveria uma maior probabilidade de que uma das grandes potências lançasse um ataque surpresa contra a outra, deflagrando uma guerra nuclear de grandes proporções. Esse temor levou à assinatura do Tratado Anti-Mísseis Balísticos (Anti-Ballistic Missile Treaty – ABM), em 1972.”

    ———————–

    O que assusta hoje,
    é justamente a falta deste temor que gera bom senso…

    Os atuais neoconservadores em Washington perderam a noção de perigo,
    ao contrários dos conservadores do tempo da guerra fria,
    os neocons tem seu instinto de sobrevivencia embotado e
    passaram a considerar que é possível sairem vitoriosos
    em uma guerra atômica. Provavelmente são os frutos degenerados
    de uma alienação da realidade e estupificação em massa,
    promovida pela força das novas mídias e entretenimentos…

    Falta o bom senso do almirante da US Navy, William Fallon, que, quando perguntado sobre uma guerra com o Irã, teria respondido: “não no meu relógio.

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