Rússia reconstroi sua indústria espacial independente e autossuficiente recuperando seu lugar como protagonista da Era Espacial

José Monserrat Filho

 

“Não podemos deixar o passado para trás e apenas cruzar os dedos: sabemos por experiência que a política, como a natureza, abomina o vácuo.”  – Tony Judt

A Rússia parece ter liquidado vários coelhos com uma só cajadada. O lançamento bem sucedido de seu novo foguete Angará-5A, peso pesado, em 23 de dezembro, da base russa de Plesetsk, é presente dos céus para o Natal do Kremlin – o primeiro foguete criado no país desde o fim da União Soviética (URSS). Veio resolver muitos de seus problemas espaciais estratégicos.

Não por acaso ou propaganda, foi chamado de “marco significativo na história da indústria de foguetes da Rússia, abrindo a ela o acesso independente ao espaço”.²

Na verdade, a Rússia reabriu esse acesso. A URSS já tinha conquistado esse privilégio em 4 de outubro de 1957, quando lançou o Semyorka³, poderoso foguete pioneiro que pôs em órbita o satélite não menos pioneiro, o Sputnik I. Mas a dissolução da URSS, a partir de 1990, rompeu a unidade da indústria aeroespacial soviética. Fábricas, escritórios de projetos e outras instalações essenciais ficaram distribuídos entre as novos países que se tornaram independentes. As lideranças nacionais de então não perceberam o mal que essa separação traria a todos eles.

A Rússia foi, claro, o país mais afetado. Ficou dependente do Casaquistão, onde se encontra  a histórica base de Baikonur – berço das maiores conquistas espaciais soviéticas –, e da Ucrânia, onde são produzidos e mantidos os foguetes Zenit, Dnepr e Cyclone.

Fabricado em Dnepropetrovsk, capital da indústria espacial ucraniana, o Cyclone já foi lançado da base de Plasetsk mais de 120 vezes, segundo o Ministério de Defesa russo.

Isso significa que, durante muitos anos ainda, depois do fim da URSS, os laços entre as indústrias militares e espaciais da Rússia e da Ucrânia se mantiveram firmes. A Ucrânia continuou fornecendo assistência técnica aos mísseis balísticos intercontinentais e veículos lançadores russos.

Além disso, o foguete ucraniano Zenit-3SL tornou-se peça essencial do consórcio “Sea Launch”, criado em 1995 por quatro empresas – da Noruega, Rússia, Ucrânia e EUA –, sob a égide da Boeing americana, para realizar lançamentos comerciais de uma plataforma marítima (Odyssey) estacionada no Oceano Pacífico, bem em cima da linha do Equador, posição ideal para lançamentos seguros e competitivos. Desde 1999, quando fez sua estreia, o Sea Launch efetuou 36 lançamentos, com três fracassos e uma falha parcial – uma média de dois lançamentos bem sucedidos por ano. Não é muito.

A ideia do lançamento marítimo era e é muito boa. Mas a operação ainda é muito cara e não atingiu o êxito comercial esperado.  Procuram-se alternativas.

A situação mudou muito com a crise econômica e política na Ucrânia, que, sem o cálculo devido, resolveu fazer o jogo da OTAN contra a Rússia.4 Ao romper a convivência normal com a Rússia e tentar vulnerabilizá-la, permitindo, por exemplo, que a OTAN ficasse a uma distância irrisória de Moscou, a Ucrânia deu-se mal e ficou na pior, inclusive e em particular na área espacial.

Hoje, ironicamente, até os países da OTAN enfrentam dificuldades para apoiá-la. Henry Kissinger, do alto de seus 91 anos, propõe como solução à crise na Ucrânia transformá-la em país neutro entre a União Europeia/OTAN e a Rússia, como ocorreu com a Finlândia durante a Guerra Fria, mantendo relações com a Europa e os EUA, mas sem hostilizar Moscou.5

A Rússia não demorou a sentir que devia acelerar a recuperação de sua indústria militar e espacial, tornando-a independente o mais cedo possível. Moscou foi mais realista do que Kiev.

O êxito do Angará-A5, lançado por tripulação militar da base militar de Plesetsk é fruto dessa virada. Ele pesa 773 toneladas e carrega até 25 toneladas, sendo capaz de lançar satélites de duas toneladas à órbita geoestacionária, a 36 mil km da Terra no plano da linha do Equador. Equipado com o motor RD-191, movido a combustível baseado em querosene e oxigênio, é considerado um dos propulsores mais generosos para o meio ambiente.

O Angará-A5 tem chance de substituir o Zenit-3SL no consórcio Sea Launch, onde a Rússia parece estar assumindo papel preponderante.

O Angará-A7, o maior foguete da família, pesará 1.133 toneladas e lançará cargas de 35 toneladas a baixas órbitas (193-220 km) e de 7,6 toneladas à órbita geoestacionária.

O Angará 1.2PP, sua versão mais leve, foi testado com sucesso em julho de 2014 (a primeira tentativa, em junho, teve de ser sustada segundos antes do lançamento).

A série Angará – obra do Centro de Pesquisa e Produção Espacial da empresa estatal Khrunichev, sediado em Moscou – reunirá todos os tipos de lançadores previstos para os futuros projetos da Rússia. O trabalho de quase duas décadas vai custar, ao todo, cerca de US$ 3 bilhões.

Atualmente, o Centro da Khrunichev pode fabricar dez Angará-5 por ano e aumentar essa produção se houver demanda, garante seu primeiro vice-diretor, Aleksander Medvedev. O programa deve estar pronto até 2020.

Os novos foguetes substituirão o Proton e o Soyuz, projetados e construídos por Serguey Korolev (1907-1966)6, o pai do programa espacial soviético, bem como o Zenit, Dnepr e Cyclone, fabricados na Ucrânia e usados muitas vezes no programa espacial russo. Aliás, o Cyclone-4 estava destinado a realizar lançamentos comerciais do Centro de Alcântara, no Maranhão, Brasil, sob o comando da binacional Alcântara Cyclon Space (ACS) – hoje em sérias dificuldades.

Cabe lembrar que a agência espacial russa, ROSCOSMOS, anunciou em novembro de 2014, que planeja construir nova estação orbital a partir de 2017, após cumprir suas obrigações com a Estação Espacial Internacional (ISS). A URSS e a Rússia acumularam ampla experiência em estações espaciais. A URSS criou e lançou as sete estações Saliut, entre 1971 e 1991. Depois veio a Mir (Paz ou Mundo, em russo), a primeira estação espacial modular, que operou entre 1986 e 2001, construída e lançada pela URSS e herdada pela Rússia. Por essas estações passaram dezenas de astronautas (ou cosmonautas, como se diz em russo) de inúmeros países, e ambos os programas estudaram a fundo a capacidade de sobrevivência da espécie humana no espaço. A Mir ainda detém o recorde de mais longo voo espacial humano único: Valery Poliakov viveu ali, sozinho, 437 dias e 18 horas, entre 1994 e 1995.

Novos e poderosos foguetes, nova estação espacial, além de outros planos. Se tudo der certo, a Rússia estará reconstruindo uma indústria espacial independente e autossuficiente – agora com vantagens competitivas antes inexistentes –, e recuperando seu lugar entre os maiores protagonistas da Era Espacial.

Note-se que tais iniciativas arrojadas, em contexto geopolítico adverso, transcorrem num momento de crise econômica na Rússia, com o preço em queda do petróleo, produto central das exportações russas.

Será que aqui também o mercado acabará por determinar a política, as usual?

Quem viver, verá.

 

 

José Monserrat Filho: Bacharel em Direito pela Universidade da Amizade dos Povos, com mestrado em Direito Internacional. Foi aluno da Academia de Direito Internacional de Haia (Holanda) e é graduado pela Universidade Internacional do Espaço (EVA), em 1989, tendo realizado seu curso na Universidade Louis Pasteur, em Estrasburgo, França. Possui ainda o curso de Doutorado em Direito Internacional realizado pelas Faculdades Integradas Estácio de Sá, do Rio, e pela Faculdade de Direito de Estrasburgo, França. Hoje trabalha na Agência Espacial Brasileira.

18 Comentários

  1. Comentário Ofensivo:
    Removido,
    A persistência do autor em comentários desse gênero, implicará na sua expulsão deste blog.
    E.M.Pinto

    • coragem não…falta vergonha na cara mesmo..pois pra estádio de futebol sempre existe interesse e dinheiro..

  2. Independente de se ter simpatias, preferencias por essa ou aquela nação, mas há que se tirar o chapéu para o povo Russo que não abre mão de sua nacionalidade e se orgulha dela, não admitindo vestir em suas cabeças os chapéus alheios. Parabéns a Russia e a seus povo por isso. Com erros ou acertos, dependendo de pontos de vista, e também do marketing de seus adversários competidores, nunca abriram mão de serem protagonistas na construção de sua história.

  3. Realmente o Angara foi um salto pra vitoria dado pela Russia, os EUA tem tentando falivelmente o lançamento de novas espaçonaves, demonstrando que esse setor é um setor complexo e que hj a Russia está na ponta. Com demonstrações como estas, e o fim da ISS não demorará muito para os países realmente aliados da Russia desfrutarem da ida ao espaço, dentre os quais a China será a mais beneficiada, e com certeza os EUA terão que ralar muito pra tirar essa imensa desvantagem tecnologica no campo espacial.

  4. Hoje, ironicamente, até os países da OTAN enfrentam dificuldades para apoiá-la. Henry Kissinger, do alto de seus 91 anos, propõe como solução à crise na Ucrânia transformá-la em país neutro entre a União Europeia/OTAN e a Rússia, como ocorreu com a Finlândia durante a Guerra Fria, mantendo relações com a Europa e os EUA, mas sem hostilizar Moscou — não sei quem é esse senhor, mas ele é um genio!

    • nossa você não sabe quem é Henry Kissinge ? tudo bem ninguém é obrigado a saber,só que é difícil encontrar alguém que se interesse por geopolítica que não o conheça,pesquise sobre ele você aprendera muito,sobre a sua influência no século 20 !

  5. E imaginar que o Brasil tem mais dinheiro que e a Russia, mesmo assim ficamos no chinelo. Até hoje não entendo esse consorcio Brasil-Ucrânia, parece que nossos políticos gostam de ver nosso Brasil boicotado pelos yankees, que ao saberem do projeto, logo forçaram a Ucrânia a não nos repassar nenhum conhecimento sobre o Cyclone! A Russia tem oferecido quase tudo ao Brasil, com produção local e etc, os caras querem nos ensinar como fazer armas, confiam mais em nós do que na China, mas nossa resposta é sempre não, preferimos ser boicotados por Yankees e ingleses no caso do Gripen… Os russos devem nos ver como um gigante dorminhoco e “bocó”!

    • Muitos militares brasileiros ainda tem aquele pensamento contrário a Rússia, que foi muito disseminado na guerra fria pelos EUA, tanto que alguns chegam ao cúmulo de pregar um boicote a China e Rússia,esses militares sempre serviram aos EUA em detrimento do BRASIL, acredito que esse pensamento ainda vigora entre muitos militares !

      Dai a razão de ficarem de picuinha diante de projetos que são de suma importância para o país !

  6. “Eu acho que a Rússia deveria investir em indústria e tecnologia e deixar de ser um mero exportador de matéria-prima”

    😀

  7. “Eu acho que a Rússia deveria investir em indústria e tecnologia e deixar de ser um mero exportador de matéria-prima”

    “A Ucrânia é uma economia em expansão”

    By Sucker & Fucker – a double two-part

    😀

    • O tem a ver Ucrânia?

      ““A Ucrânia é uma economia em expansão””

      E a Rússia também…
      Se esqueceu que esse ano foi fraco e os próprios russos consideram grande a possibilidade da Rússia encolher, ou já está encolhendo.

    • Eu estava pensando se os russos estivessem chegado a Lua, como os EUA afirmam ter chegado,as dúvidas levantadas hoje sobre essa conquista seriam certeza, milhares de ”especialista” iriam estudar as imagens,áudio , filmes,enfim toda a documentação existente, e diriam:

      É uma farsa, cade as estrelas,esse modulo não voa, as sombras estão em várias direções,etc e etc e o mundo estaria dizendo que o homem nunca teria ido a Lua !

      • “A mentira é a religião dos escravos e dos senhores.”

        Máximo Gorky

        “Uma Mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade.”

        Joseph Goebbels

        “Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a, e eventualmente todos acreditarão nela”

        Adolf Hitler

        “Guerra é paz…Liberdade é escravidão…Ignorância é força…1984”

        George Orwell.

        Ou você tem uma estratégia própria ou então é parte da estratégia de alguém……..

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