Sugestão: HMS Tireless
Post publicado originalmente a 7 de abril de 2014
Há especialistas em relações internacionais que consideram a anexação, pela Rússia, da península da Crimeia, parte integrante da Ucrânia, como o acontecimento político mais significativo desde a dissolução da União Soviética, em dezembro de 1991.
Pode ser exagero, pode não ser. O fato é que, com o ato, com declarações grandiloquentes e críticas pesadas aos Estados Unidos disparadas desde o faustoso Salão São Jorge do Kremlin, o presidente russo Vladimir Putin acrescentou mais uma etapa ao que pretende ser a construção de uma importância estratégica essencial da Rússia no cenário mundial.
Aproveita-se, para isso, de fatores como a instabilidade generalizada provocada pela brutal crise econômico-financeira de 2008, as limitações gritantes das organizações internacionais e do contrapé em que se encontra a superpotência americana, saindo de duas guerras que não conseguiu terminar de modo aceitável e que lhe sangraram em milhares de baixas e trilhões de dólares.
Diante de tudo isso, pode parecer um ato de arrogância o que fez dias atrás o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, durante a reunião de cúpula sobre segurança nuclear em Haia, na Holanda, quando menosprezou o poderio soviético dizendo:
– A Rússia é uma potência regional que ameaça a alguns de seus vizinhos mais próximos não por sua força, mas por sua debilidade.
Santo Deus! “Potência regional” uma potência nuclear com 1.480 ogivas atômicas operacionais, mais 2.000 armas nucleares táticas (curto alcance) e outras pouco mais de 1.000 estocadas, segundo estimativas da Federação Americana de Cientistas?
“Potência regional” que tem poder de veto — e como usa! — no Conselho de Segurança da ONU?
Que dispõe das maiores reservas de petróleo comprovadas do planeta?
Presidentes de países importantes, porém, em reuniões importantes como a de Haia, não jogam conversa fora em público. O que Obama disse foi, obviamente, premeditado, com alvo certo — as fragilidades do “império” que Putin quer restabelecer, seja com a grandeza passada do império czarista, seja com o peso estratégico do império soviético.
A Rússia está longe do que Putin pretende projetar. Tem grandes vulnerabilidades, começando por sua maior riqueza — o petróleo /gás natural. O país depende excessivamente desse único item para tocar sua economia, e o petróleo não apenas está sujeito a frequentes oscilações de preço como começa a enfrentar a forte concorrência do óleo e do gás produzidos a partir do xisto, dos quais os EUA guardam a maior reserva do planeta.
A excessiva concentração na indústria petrolífera provoca, entre outros efeitos, investimentos abaixo do necessário na atualização tecnológica de outras indústrias.
Outra questão são as Forças Armadas. Apesar dos esforços do presidente em suas duas passagens anteriores pelo poder e do empenho no atual mandato, boa parte do material bélico do país está obsoleto, mau conservado ou defasado tecnologicamente.
E, sobretudo, embora se trate de Forças Armadas respeitáveis e ainda poderosas, quando não se fala do arsenal nuclear faltam-lhes armamentos vitais.
Para ficar em um único exemplo, em matéria de um elemento crucial para domínio dos mares e de projeção de poder, os porta-aviões (e respectivas escoltas), a Rússia dispõe de apenas um único, de propulsão não nuclear e velho de 19 anos, o Almirante Kuznetzov.
Já os Estados Unidos mantêm nada menos do que 10 mortíferos porta-aviões atômicos em atividades, mais dois em reserva e três em construção, sendo que o primeiro destes, o Gerald R. Ford, um gigante capaz de levar 90 aeronaves militares, estará em serviço ativo no ano que vem.
As debilidades russas aparecem igualmente em outras áreas. Um problema gravíssimo é o déficit demográfico, algo especialmente importante num país que, com seus espantosos 17 milhões de quilômetros quadrados (o dobro do Brasil): a população russa não apenas não cresce como seria necessário, como vem decrescendo.
Putin já em 2006 classificou a questão como “o problema mais agudo da Rússia contemporânea”, ao mesmo tempo em que lançava um programa de estímulos a casais que quisessem ter um segundo filho.
O fato é que, nos últimos 20 anos, a população caiu de 148 milhões para os atuais 142,5 milhões (estimativa 2014 da publicação especializada World Population Review), e a Divisão de População da ONU (UNPD) projeta, para 2025, um máximo de 136 milhões a um mínimo de 121 milhões de habitantes, dependendo do comportamento da população. Para 2030, pode baixar para 115 milhões.
A expectativa de vida para os homens situa a Rússia entre os 50 piores países do mundo nesta questão e é espantosamente baixa para um país com bom grau de desenvolvimento – 64 anos, muito menos do que os 71 do Brasil! Para não falar de um país como o Canadá, em que o número se aproxima dos 80 anos.
Essa situação se deve principalmente ao disseminado problema do alcoolismo e à piora dos serviços públicos na área médica durante os primeiros e caóticos anos pós-comunismo. Os dados são assustadores: reportagem recente do jornal britânico The Guardian mostrou que um quarto (25%) dos russos do sexo masculino morre antes de chegar aos 55 anos, contra um índice, por exemplo, de 7% no Reino Unido.
Finalmente, há a questão das dimensões da economia. Como escreveu recentemente o analista Andrea Rizzi no jornal madrilenho El País, “a capacidade de influência internacional e o poderio militar não podem subsistir sem uma subjacente prosperidade econômica”. E a Rússia, não custa lembrar, com seus 2 trilhões de dólares, tem um Produto Interno Bruto igual ao da comparativamente minúscula Itália. A soma de produtos e serviços do país de Putin equivale a apenas 25% da riqueza da China e um oitavo da dos Estados Unidos.
Tudo somado, perfaz um país com problemas, e também um grande país — mas longe, ainda, por ter pés de barro, do colosso que Putin pretende.
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