Um futuro estável para a Ucrânia

Ilustração: Matt Kenyon

Existe na opinião pública do Ocidente a ideia difundida de que, no que se refere à crise na Ucrânia, a política russa é determinada pelas ambições pessoais do presidente Vladímir Pútin. Na Rússia, pelo contrário, acreditam que essa crise tenha sido criada pela expansão da esfera de influência do Ocidente para o Oriente. Essa expansão levou a uma situação de “jogo de soma zero” no espaço pós-soviético, onde alguns países permanecem mais ligados à Rússia do que outros. Na crise da Ucrânia, Moscou defende os seus interesses nacionais, alguns dos quais são vitais.

Vou tentar explicar a política russa com a ajuda de uma analogia contrafactual. Imaginemos que não tivesse acontecido o colapso da União Soviética há 23 anos, mas sim o colapso dos Estados Unidos. Como resultado, os Estados costeiros e fronteiriços de Washington, Califórnia, Arizona, Novo México, Texas, Flórida e Geórgia se separavam dos Estados Unidos. Os “ex-EUA” perderiam assim o seu conveniente acesso ao Oceano Pacífico, ao mesmo tempo que infraestruturas públicas vitais –o centro espacial da Nasa, bases militares e portos, oleodutos e ferrovias, centros de GPS e instalações industriais –passavam a ficar no território de outros Estados.

Washington gastaria as duas décadas seguintes no restabelecimento da economia e na criação de infraestruturas alternativas àquelas que tinham ficado em território de vizinhos que se recusavam agora a cooperar com os Estados Unidos. No entanto, alguns dos antigos territórios norte-americanos se manifestavam a favor do restabelecimento da união e Washington mantinha cooperação com eles.

Com esse pano de fundo, o influente e ativo poderio europeu começava a reforçar a sua presença na América do Norte e na América Latina, fazendo a sua expansão a partir de Cuba. A potência externa propunha aos antigos estados norte-americanos uma aliança militar e uma integração econômica sob o lema “Os países têm o direito soberano de escolher o seu próprio caminho”. Entre os Estados Unidos e essa força externa se iniciava então um jogo de “soma zero”. Atritos levariam a conflitos em volta do centro espacial no Texas e da base naval em San Diego, na Califórnia. Nesta luta, a força externa expandia a sua esfera de influência e os EUA protegiam os seus interesses. E tudo isso seria lógico.

Mesma lógica

É esta mesma lógica que explica a política da Rússia na Ucrânia, a política da proteção dos seus interesses –uma base militar na Crimeia, a passagem de recursos energéticos para a Europa, a cooperação comercial e industrial e os direitos da população russa. No lugar de Moscou, os Estados Unidos estariam agindo precisamente da mesma forma.

Mas agora não é a potência europeia que está expandindo a sua presença no Novo Mundo, mas sim os EUA e a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) no Velho. Pela lógica de Bruxelas e Washington, os países do espaço pós-soviético têm o direito soberano de escolher em quais alianças políticas, econômicas e militares entrar. No entanto, os grandes países que ficaram fora da Otan questionam qual o papel dessa organização no continente e contra quem ela pretende se defender.

A Otan foi concebida depois da Segunda Guerra Mundial como uma aliança defensiva contra a União Soviética. O colapso da União Soviética foi seguido de uma tentativa de dar ao potencial poder do órgão funções mais globais, ou seja, a aliança passaria a atuar na defesa de ameaças de todo o mundo. Ao longo dos últimos 20 anos, a organização por duas vezes se colocou na defesa: contra a Iugoslávia e também contra o Afeganistão e a Líbia.

Em 2003, os membros da Otan discutiram se valia ou não a pena usarem a força no Iraque e, no final, os mais ativos deles decidiram que sim, que valia a pena. No contexto da crise ucraniana, o secretário-geral adjunto da Otan, Alexander Vershbow, referiu que a organização via a Rússia como uma ameaça. Ele repetia aquilo que antes dele afirmavam alguns legisladores norte-americanos e os governantes dos países bálticos e da Polônia.

Nem todos na Otan compreendem que os Estados pós-soviéticos são muito frágeis. Provocações externas destroem a estabilidade política nesses países e, com isso, as condições para o seu crescimento econômico. Isso impede a passagem rápida dos Estados do espaço pós-soviético pela armadilha da renda média para o nível dos países desenvolvidos da Europa. É o bem-estar que leva à democracia e não vice-versa.

Os habitantes dos EUA e da União Europeia, que no decurso de uma geração assistiram à rápida integração e desenvolvimento, acreditam que o mundo inteiro vive no mesmo ritmo que eles. No entanto, o espaço pós-soviético esteve todos esses anos assistindo a outros processos: a decomposição da comunidade e a tentativa de evitar os conflitos daí resultantes.

Recuperação

Nos últimos anos, a Rússia tenta recuperar a posição de núcleo dinâmico da Eurásia. Na Ucrânia, esse processo é confrontado com a expansão da zona de influência do Ocidente em direção ao Oriente.

Na verdade, não foram os Estados Unidos que iniciaram a revolução em Kiev. Mas eles decidiram usar a situação para reforçar a sua posição, contribuindo assim para a divisão da sociedade ucraniana e fortalecendo nela forças políticas irresponsáveis. O novo governo de Kiev tentou usar os EUA e a Otan para combater a Rússia, da mesma forma que já antes tinha tentado fazer Mikheil Saakashvili, que atacou as forças de paz russas na Ossétia do Sul em 2008.

Ao apoiar a integração euro-atlântica da Ucrânia, o Ocidente estilhaça o país em várias partes e causa danos irreparáveis nas suas relações com a Rússia. Conclusão inevitável: é do interesse de todas as partes começar a acordar como vão ficar as regras de interação na Europa e como conseguir um futuro estável para a Ucrânia.

Andrêi Suchentsov: Professor associado do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou e pesquisador do Clube Valdai.

Fonte: Gazeta Russa

1 Comentário

  1. ´Diz o texto: “É o bem-estar que leva à democracia e não vice-versa” (eu trocaria “vice-versa” por “o contrário”)…
    A frase resume tudo… Pena que os bocós, leitores de Veja sejam incapazes de entender…
    😉

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