Tentativas de dividir o mundo entre “nós” e “eles” só levam a novos conflitos

A humanidade assinala este ano um século desde o início da Primeira Guerra Mundial. O que aconteceu há cem anos por causa de contradições dentro da mesma civilização resultou em milhões de vítimas em todo o mundo, apesar de, ao que tudo indicava, a humanidade ter na época atingido um grau bem elevado de compreensão mútua e progresso.

O elevado potencial cultural e intelectual da civilização europeia também não conseguiu evitar a Segunda Guerra Mundial, entre as principais causas da qual esteve a teoria xenófoba da superioridade racial que tomou conta das mentes de nações altamente desenvolvidas da Europa. Da Segunda Guerra Mundial nasceu imediatamente a Guerra Fria. Um quarto de século atrás desapareceram as bases ideológicas para a sua continuação, o bloco dos Estados socialistas se dissolveu e a União Soviética se desfez.

No entanto, esse exemplo não foi seguido pelos antigos antagonistas do bloco, que não só preservaram, como passaram a fortalecer e a expandir a sua infraestrutura militar e política. Com isso se mantiveram as condições prévias para o ressurgimento de cismas e contradições no continente eurasiático, que foi o que começou inevitavelmente a se manifestar nos acontecimentos das últimas décadas, desde a guerra na ex-Iugoslávia até o atual conflito na Ucrânia.

Em relação à multinacional e multicultural União Soviética do tempo da Guerra Fria, o Ocidente usou uma política de contenção. Mas a União Soviética já não existe mais. E não existe nenhuma razão para a continuação da Guerra Fria. No entanto, não surgiu nenhuma política nova qualitativamente diferente do Ocidente em relação ao país sucessor da URSS, isto é, em relação à Rússia moderna.

A política de envolvimento poderia ter sido diferente. Mas o Ocidente não conseguiu resistir à tentação de gozar os frutos da “vitória” da Guerra Fria. Vitória imaginária, é preciso que se diga, uma vez que seu fim foi, em igual grau, realização e resultado dos esforços de todos os seus participantes.

Divisão

Seja como for, houve uma divisão do mundo entre “nós” e “eles” e certos países foram colocados entre a falsa escolha do “está conosco ou está contra nós?” Primeiro foi a Polônia e a Bulgária, depois foi a vez da Geórgia e da Moldávia, agora é a Ucrânia e, mais tarde, quem sabe,  Bielorrússia e Cazaquistão, por exemplo.

E a Rússia? Terá o Ocidente alguma estratégia “russa”? Uma estratégia, no verdadeiro sentido da palavra? Não, não tem. E nunca teve. Afinal, se tal estratégia tivesse existido, nós, tal como no seu tempo aconteceu com a França e a Alemanha, que criaram a atual União Europeia, teríamos esse tempo todo nos concentrando naquilo que já nos une e não naquilo que ainda nos separa. Mas toda a experiência das duas últimas décadas mostra que, quando se trata de política em relação à Rússia, o foco é feito precisamente nas diferenças, não nos fatores unificadores.

Temos de admitir que o Ocidente está se arriscando a perder a Rússia ao adquirir “novos aliados” ao longo de suas fronteiras. E esse é o principal erro de cálculo geopolítico do Ocidente. Afinal, nada de terrível vai acontecer com a Rússia. Mas não existirão alianças, não existirá nenhum envolvimento a nível global.

Enquanto não nos juntarmos não será possível vencer o terrorismo, a ameaça do narcotráfico, os problemas energéticos, os de acessos à água potável e os de desenvolvimento sustentável.

Ucrânia

No Ocidente, tentam apresentar a situação na Ucrânia como uma consequência das ambições imperialistas da Rússia que ameaçam os seus vizinhos. No entanto, tal primitivismo da crise de forma alguma contribui para a busca de caminhos para sair dela.

As verdadeiras causas dos acontecimentos trágicos na Ucrânia estão englobadas, principalmente, na tentativa de apresentar o conflito interno naquele país como consequência de certas contradições de valores que deixam antever uma nova divisão das nações entre “corretas” (capazes de assimilar determinados valores) e “erradas”. Na verdade, na base dos conflitos que tentam interpretar como entre civilizações estão, na maioria das vezes, problemas de natureza econômica e social.

Eles estão relacionados com as persistentes diferenças nos padrões de vida, no desenvolvimento nacional, na distribuição da riqueza e nas direções dos fluxos de recursos globais.

No caso da Ucrânia, todos esses problemas foram agravados pelo desejo dos nacionalistas de ignorar as tradições históricas, culturais e nacionais do seu próprio país, no desejo de dividi-lo em “nós” e “eles” e, em seguida, em transformar o país em um local apenas para os ucranianos. As inevitáveis ​​consequências de tais políticas vão desde a violência física contra os cidadãos que não concordam com este rumo dos acontecimentos, até a guerra civil em grande escala, sendo que ela se tornou possível, em primeiro lugar, devido ao apoio incondicional que os nacionalistas ucranianos recebem de fora.

O exemplo russo, pelo contrário, consegue convencer de que é possível a coexistência secular de diferentes raças, culturas e religiões dentro de um único Estado. Em geral, a história da Rússia é a história de um diálogo entre diferentes civilizações. Ela nem sempre evoluiu da melhor forma. No entanto, o nosso país conseguiu encontrar um modelo de convivência em nome do bem comum, o que torna a sua experiência única e merecedora de ser estudada. Talvez seja precisamente por causa de suas especificidades civilizacionais que a Rússia nunca foi uma potência colonial, antes pelo contrário, deu uma contribuição significativa para o colapso do sistema colonial no mundo.

A Rússia continua disposta a contribuir para o desenvolvimento do diálogo entre civilizações porque não vê qualquer alternativa a ele. Mais precisamente, porque vê que, em particular, os mecanismos de liderança unipolar provaram perante os nossos olhos ser um beco sem saída e até mesmo um perigo.

Apesar da dificuldade, a humanidade está entrando em uma nova era, a era da multipolaridade prática. É hora de nos prepararmos para ela e não de ficarmos agarrados às receitas do passado.

Konstantin Kossatchov:  Diretor da agência Rossotrudnditchestvo.

Fonte: Gazeta Russa

 

5 Comentários

  1. “Mas a União Soviética já não existe mais … No entanto, não surgiu nenhuma política nova qualitativamente diferente do Ocidente em relação ao país sucessor da URSS, isto é, em relação à Rússia moderna.”

    Eu discordo totalmente. Surgiu sim uma alternativa baseada, em minha opinião, na mesma linha que levou os civilizados europeus a meter o mundo em duas grandes guerras no século XX. É chamada de Terceira Via e tem como principal expoente o sociólogo britânico Anthony Giddens.

    A construção da terceira via se dá à partir de meados dos anos 1980 e tem seu ápice justamente no momento em que a URSS diluiu-se em nada. De forma simplificada, foca-se no fortalecimento da ação individual e de uma forte tendência de manutenção da noção de especialização de indivíduos e, por consequência, das sociedades.humanas. Esta compartimentalização dos conhecimentos associados a nova coqueluche econômica (iniciada no Chile dez anos antes) conhecida como escola de Chicago, foi o que se ofereceu ao mundo como alternativa ao final da guerra fria. Ao mesmo tempo inicia-se a tentativa de criminalizar qualquer tipo de conceito que possa ser entendido como “ideológico”, com o objetivo de minimizar justamente a noção de coletividade que o termo carrega (e diferente do que absurdamente pregam alguns comentaristas aqui no PB, ideologia não é construção comunista ou socialista para dominar o mundo).

    A Terceira Via quase conseguiu se transformar em projeto de Estado com Tony Blair (o termo foi usado em suas campanha), que conseguiu fazer com que Anthony Giddens inclusive participasse de seu governo.

    O azar dessa turma é que esqueceram de combinar com o Bin Laden, e o arcabouço estrutural da proposta foi atropelada (em parte) pela velha e “arcaica” realpolitik (que, a propósito, também tem como característica tentar diminuir a ação baseada em estruturas ideológicas). Os eventos de 11/09 forçaram os defensores da terceira via a abrirem mão de certas prerrogativas, e foi aí que países como a Rússia conseguiram sobreviver sem venderem sua alma aos “vencedores” da Guerra Fria. Aliás, o termo “terceira via” quer dizer exatamente isso: nem capitalismo, nem socialismo, mas uma outra alternativa.

    Mas nós aqui no Brasil ainda temos alguns expoentes tentando salvar alguma coisa dessa Terceira Via. De fato, o candidato do PSDB nesta eleição tinha a maior parte de seu programa ainda baseado neste conceito (apesar de que, pessoalmente, creio que ele nem saiba o que é isso). E digo “ainda” porque ele já havia sido usado anteriormente no governo de FHC, o principal defensor tupiniquim da tese. Mas até isso ele tem negado em algumas entrevistas, pra variar.

    • “Terceira Via” ja foi discutida nos circulos de Max Weber, que rejeitavam o bismarckismo, nao aceitavam ao liberalismo economico anglo-saxonico e odiavam o sistema socialista. Terceira via fez parte do discurso de praticamente todos os partidos de extrema direita na Europa Ocidental, do discursos dos mulssuanos fundamentalistas, sunis e shias, e do programa politico de Muhamar Quadafi. Em bom lembrar que foi a adesao ao conceito de “terceira via” que permitiu Quadafi, financiar quase todos grupos de extrema direita na Europa Oidental. Para mim o artigo do Voz da Russia, expressa a frustracao de setores da oligarquia russa que faz tudo para encontrar uma maneira de conviver no mundo dominado pelos EUA em condicoes de igualdade, quando os EUA nao aceita tratar nenhum pais em condicoes de igualdade, mas todos como subitos, subordinados. Blairismo. New Labour, Guidens, nunca foi nada mais de rotulo novo para garrafa de vinho velho. Foi a continuidade do Thatcherismo com nova faces. Alias, Blair consegiu implementar a politica de ensino pago na Inglaterra, um objetivo que ainda que almeijado pelos consevadores durante o regime de Thatcher, eles nunca o adotaram, por causa de sua impopularidade.No momento existe duas vias em operacao. Neoliberalismo e Social Democracia, que adotam o neoliberalismo com forma de estatismo.E o que predomina na Europa Ocidental e nos EUA. Mesmo o discurso fascista, nao vao alem dessa duas formas de economia politica. O regime de libertarianismo pregado pela escola de von Mises, nao tem aderentes fora de um circulo reduzido de intelectuais e financistas. Jim willie, Senador Ron Paul, Zero Hedges etc por exemplo sao exponentgs desse grupo. A outra via, que realmente se opoe todas essas vias, a Ditadura do Proletariado,praticamente nao faz parte do discurso politico de ninguem a nao ser de uns velhos dinossauros.

  2. RobertoCR, sinceramente não entendi onde você quis chegar, se se discurso e uma defesa do neoliberalismo ou uma crítica.

    Eu pessoalmente não vejo o neoliberalismo como solução mundial, muito ao contrário tenho severas críticas, pois não consigo acreditar num sistema de econômico e de governo onde as questões de ordem econômica devem ser reguladas pelo próprio mercado, sendo que sabemos que o mercado e dominado por grandes corporações que somente desejam o lucro, e as leis básicas da economia livre com livre concorrência e livre mercado nem sempre condiz com as vontades destes grupos econômicos.

    Como exemplo podemos citar o desastre que foi a implantação da política neoliberal no Brasil com abertura de nosso mercado aos produtos importados, sem que houvesse sido efetuado um grande projeto de desenvolvimento da indústria nacional.

    não sou a favor de regimes totalitários, mas a experiência chinesa de um capitalismo centralizado se demonstra a melhor opção para países em desenvolvimento, vez que mesmo se aplicando teorias de livre comércio e concorrência os chineses planificam sua economia, controlam a emissão de moeda, gerenciam as taxas de câmbio e os investimentos sociais, estabelecem metas de produção e monopolizam setores sensíveis aos investimentos governamentais, e com base neste modelo econômico tem conseguido proteger seu mercado, expandir seu nível de crescimento sem se expor aos chacais internacionais.

    não será adotando uma política neoliberal que vamos conseguir o tão almejado desenvolvimento econômico e social, pois todos nós sabemos que a única cosia que as grandes potencias e as grandes corporações desejam e nosso mercado consumidor e nosso imenso reservatório de matérias primas, não vemos até o presente momento nenhum grande projeto de desenvolvimento sustentável em nosso país, nem tampouco vemos a entrada de capitais estrangeiros em setores produtivos e sim somente na especulação financeira e nos investimentos de risco como bolsa de valores.

    Infelizmente nos ocidentais estamos acostumados a exportar nosso ,odo de vida e não conseguimos ainda compreender que existem diferentes maneiras de se manifestar o poder, e insistimos em exportar a nossa tão desejada democracia e os ideais do livre inciativa econômica, sem contudo se preocupar com as características individuais de cada povo, de cada região e somente conseguimos transformar o mundo numa colcha de retalhos, impondo a co-existência de grupos sociais que nunca pertenceram ao mesmo espectro de ambições e desejos, basta ver a divisão política que nós ocidentais impusemos á Africa e ao oriente médio, desrespeitando séculos e séculos de tradições politicas, sociais e ideológicas, tudo em nome da defesa da pax americana.

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