Luiz Giaconi é empresário, escritor e jornalista formado pela faculdade Cásper Líbero; Pós-Graduado em Política e Relações Internacionais pela FESP-SP.
Através dessa série de textos pretendo recontar ações de desarmamento através da história, os motivos que levaram determinados povos a fazer essa escolha e mostrar suas consequências, muitas vezes inesperadas e desastrosas. Desarmamento não é uma iniciativa nova, e os casos do passado servem, muitas vezes, como lição para o presente e para o futuro.
O caso japonês
As primeiras armas de fogo foram introduzidas no Japão aproximadamente em 1270. Devido à proximidade das ilhas japonesas com a China continental, os japoneses foram introduzidos à pólvora e a armas de fogo rudimentares antes dos europeus. Essas armas chamavam-se teppos: canhões simples e pequenos, sem gatilhos ou miras, municiados pela boca. Por possuírem baixa eficiência, esses canhões eram relativamente pouco usados. Para longas distâncias, o arco era a arma favorita das tropas.
A situação mudaria aos poucos à partir de 1543, com a chegada dos primeiros exploradores portugueses às ilhas japonesas. Com os lusos, vieram novas armas de fogo, desenvolvidas na Europa: os arcabuzes. Chamadas tanegashimas, a versão japonesa do arcabuz português tinha seu mecanismo de disparo de projéteis através de um gatilho e fecho de mecha. Uma evolução tremenda se comparada com os antigos canhões chineses. Logo várias oficinas em todo o Japão passaram a produzir essa nova arma. Registros apontam que nos primeiros 10 anos, cerca de mil tanegashimas foram encomendadas pelos diversos senhores feudais japoneses.

I magem: Arcabuzes japoneses, Tanegashimas
As primeiras armas dessa leva eram pesadas e rudimentares. Comparativamente, o arco ainda era mais eficiente. Enquanto um soldado armado com uma tanegashima disparava um tiro, um arqueiro bem treinado poderia disparar quinze flechas. O mecanismo de disparo era suscetível à umidade e à água. Possuía baixo alcance (cerca de 100 metros) e baixo poder de penetração. A vantagem de uma arma dessas era a acessibilidade. Seu manejo e treinamento eram muito mais simples e práticos para agricultores e pessoas com pouco traquejo militar.
Com o tempo, as tanegashimas foram melhoradas. Calibres maiores foram desenvolvidos, aumentando a letalidade e o alcance das mesmas. Técnicas de combate para melhor utilizar as novas armas também foram desenvolvidas. Vários soldados armados com as tanegashimas, e postados lado a lado, formavam uma formidável linha de fogo, tática que seria utilizada em todo planeta. Proteções móveis de madeira também eram utilizadas para defender os atiradores. Menos de 30 anos depois de sua chegada ao Japão, as tanegashimas superaram o arco, e se tornaram a arma favorita dos senhores feudais para combates à média e longa distância. Na invasão da Coréia (1592), estima-se que mais de quarenta mil soldados armados com tanegashimas, participaram da batalha para ocupar Seul, a capital do império Coreano. Em menos de setenta anos, o Japão produzia mais armas do que a Europa.
Paz interna e desarmamento
Apesar do Japão ter imperadores desde o ano 660 antes de Cristo, no período anterior ao ano de 1600, o poder estava na mão de vários senhores feudais, que guerreavam entre si pelo controle de terras. Uma situação similar à da Europa antes do surgimento dos primeiros Estado nação. O Japão fragmentado era terreno fértil para guerras e disputas. E para o surgimento e desenvolvimento de armas de fogo, como as tanegashimas. Quem detivesse a melhor e mais eficiente arma, levaria vantagem em um conflito. Por sessenta anos, armas de fogo foram amplamente utilizadas. Até o momento em que surgiu um vitorioso nas disputas internas.
As guerras internas foram vencidas pelo Xogum Tokugawa Ieyasu. Em 1603, começou o período que ficou conhecido como Xogunato Tokugawa. Antigos inimigos tiveram suas terras confiscadas e foram punidos e exilados. Aliados e familiares foram premiados com terras e títulos de nobreza na corte imperial. Aos poucos, depois de mais de setenta anos de comércio e de relações com povos estrangeiros, especialmente portugueses, espanhóis e holandeses, o Japão se fechava. O medo era de que o cristianismo, trazido pelos jesuítas portugueses, ameaçasse as tradições locais. A religião foi proibida, seus praticantes perseguidos e os portos japoneses fechados para o comércio com o mundo exterior, numa política extremamente isolacionista. Apenas os navios holandeses puderam manter uma pequena troca comercial, através do porto de Nagasaki. Com o controle total do território japonês pelo Xogum, se iniciaria um período de mais de 250 anos de paz interna.

Imagem: Xogum Tokugawa Ieyasu
É nessa época em que se dá o desarmamento japonês. São duas teorias que tentam explicar o que aconteceu no Japão. A primeira é que não houve um desarmamento deliberado. Já que o país estava em paz interna, e praticamente fechado para contato com estrangeiros, as armas de fogo não eram mais necessárias, e aos poucos, foram perdendo sua utilidade, sendo usadas pontualmente para caça e afugentar animais selvagens. Para os pequenos conflitos internos, a espada samurai e o arco já bastavam.
Já a segunda teoria é que houve sim uma deliberada ação de desarmamento, por diversos fatores. O primeiro era a questão de nobreza. Enquanto na Europa, cerca de 1% da população poderia ser considerada nobre, no Japão esse número subia para cerca de 10%. Era inadmissível para um nobre samurai, com anos de treinamento, parecer frágil perante um camponês. E um camponês armado com arma de fogo é capaz de derrotar qualquer samurai. O segundo ponto do desarmamento deliberado é o controle. Camponeses sem armas de fogo são mais fáceis para ser controlados pela nobreza. E a nobreza desarmada é mais facilmente controlada pelo Xogum, evitando possíveis contestações ao poder central. O terceiro fator é a honra. Numa sociedade que valorizava as tradições, rituais e a honra acima da tudo, a morte gloriosa para o guerreiro era no fio da espada do inimigo. Morte com um tiro era tida como pouco honrosa, ainda mais se o atirador fosse um camponês. As oficinas que produziam tanegashimas, foram aos poucos fechadas, ou voltaram a produzir espadas e arcos.
Seja qual for o verdadeiro motivo do desarmamento, nos 250 anos seguintes, a utilização de armas de fogo no Japão foi ínfima. Tudo iria mudar graças à frota do Comodoro Perry.

Imagem: pintura japonesa do Comodoro Perry
Abertura sob a mira dos canhões
Praticamente todas as tentativas europeias de manter ligações comerciais foram infrutíferas. Até que, em julho de 1853, uma frota de quatro navios americanos, comandados pelo Comodoro Matthew Perry entrou na baía de Tóquio. Exigindo negociações para a abertura de portos para as embarcações americanas, Perry demonstrou toda a potência das munições explosivas dos canhões Paixhans, atirando em alguns prédios do porto de Tóquio.
Nada que os japoneses tinham no momento era páreo para encarar uma frota moderna e altamente equipada, como a comandada por Perry. Humilhantemente, as exigências americanas foram atendidas e os japoneses aceitaram abrir negociações. Nos anos seguintes, acordos comerciais foram assinados com as diversas potências europeias e com os norte-americanos.
Aos poucos, o Japão que tinha se mantido isolado do mundo, ia se abrindo e modernizando, inclusive militarmente. Em 1868, foi dada a pá de cal no antigo sistema: com a Restauração Meiji, o imperador recuperava os poderes. Era o fim do Xogunato e o fim de uma era. Menos de quarenta anos depois, os japoneses derrotavam os russos na guerra Russo-Japonesa (1904-05).
Em menos de meio século, um povo que antes se isolava e se armava com arcos e espadas, se colocava na posição de potência global. Uma potência que seria capaz de criar, num futuro próximo, com todas as limitações materiais que possuía, armas e equipamentos espetaculares. Talvez o Japão estivesse ainda melhor preparado para o que enfrentaria na Segunda Guerra, se tivesse se modernizado e aberto com maior antecedência.
Situação atual
Como país derrotado na Segunda Guerra, o Japão foi obrigado a extinguir suas forças armadas, e depender em grande parte do “guarda chuvas nuclear americano”. A crescente ameaça chinesa e norte coreana, junto com as dificuldades econômicas e militares dos EUA, fazem com que políticos japoneses pensem em reescrever o trecho da constituição (imposta pelos americanos), que impede a criação de uma força militar com capacidade ofensiva. Na atualidade, quem tem o papel de defesa são as Forças de Autodefesa, de capacidades apenas defensivas, como diz o nome.
Na esfera civil, o Japão possui uma regulamentação extremamente rígida sobre compra e porte de armas. Os tipos de armas permitidas para os civis são rifles de caça e escopetas. Esportistas podem ter armas para caça e para prática de tiro, mas as licenças são demoradas e complicadas de se conseguir. Sem uma licença, um cidadão japonês não pode nem segurar uma arma.
O Japão é uma sociedade com baixos índices de violência, comparativamente com outros países do mundo. Mas, mesmo com todas essas regulações, crimes entre gangues e envolvendo menores de idade estão em alta. Em 2007, o Partido Democrata Liberal, a maior organização política do país, pediu um controle ainda maior na venda e porte de armas de fogo para população civil, apertando ainda mais o cerco contra quem quer possuir uma arma de fogo.
11 Comments