Na Crimeia, Kremlin vai pouco a pouco riscando mazelas do legado político de Stálin

Quando discutirem a dinâmica política no espaço pós-soviético, os historiadores do futuro irão provavelmente se referir a 2014 como o “ano da Crimeia”. Essa é a primeira vez, desde o colapso da União Soviética, que se cria um precedente de mudança de jurisdição em uma entidade territorial autônoma.

Ao contrário da Abecásia, Ossétia do Sul e da República Autônoma da Transnístria, a Crimeia e Sevastopol, ao deixarem o território da Ucrânia, não se tornaram um território não reconhecido, mas passaram a ser duas entidades territoriais da Rússia. Especialistas e políticos veem nisso um reforço da posição russa na região do mar Negro e em toda a Eurásia. No entanto, a história da Crimeia não termina por aqui.

Com o fim de determinados problemas e desafios, outros surgirão. E o mais importante deles é a integração da população multiétnica da península na Rússia. Por mais óbvio que seja a inclusão dos novos cidadãos na política russa, isso será impossível se as autoridades nacionais não derem passos simbólicos.

Exemplo disso foi o decreto assinado em 21 de abril passado, quando o presidente Vladímir Pútin aprovou medidas de reabilitação dos tártaros e outros povos da Crimeia (armênios, búlgaros, gregos e alemães) deportados entre 1941 e 1944. No entanto, deve-se prestar especial atenção ao contexto em que tal decisão foi tomada.

Em primeiro lugar, o dia 9 de maio deste ano marcou o 70º aniversário da libertação de Sevastopol durante a Grande Guerra Patriótica [como a Segunda Guerra Mundial é conhecida na Rússia]. Uma vez que o evento recebeu grande cobertura da mídia, acabou se tornando um símbolo especial do Dia da Vitória de 2014. Além disso, no próximo domingo (18), uma outra data será celebrada na Crimeia – o Dia da Memória das Vítimas da Deportação dos Povos da Crimeia.

Os primeiros a serem expulsos em agosto de 1941 foram cerca de 60 mil alemães. No ano seguinte, foi a vez dos italianos, que viviam principalmente na região de Kerch. A deportação de 183 mil pessoas que compunham a população tártara da Crimeia, sem contar os respectivos soldados que serviam no Exército Vermelho, aconteceu no dia 18 de maio de 1944, e, alguns dias depois, os soviéticos iniciaram uma operação para expulsar búlgaros, gregos e armênios da Crimeia, em um total 37.000 pessoas.

A razão oficial para essas medidas era o suposto colaboracionismo dos representantes dos povos da Crimeia com os ocupantes nazistas. É evidente que aconteceram casos de colaboracionismo – e não foram casos isolados. Mas convém citar que, entre os deportados, havia também pessoas inocentes, que tinham saído da Crimeia antes da ocupação, e até mesmo veteranos de guerra. De um modo geral, a disseminação do princípio de “culpa coletiva” profanou a noção de justiça em toda a região.

Foi somente em abril deste ano que o governo russo conseguiu riscar mais uma linha sobre o legado da política nacional de Stálin – e fez isso na véspera de datas importantes. Assim, Moscou dá a entender que é importante a memória da vitória na Grande Guerra Patriótica, bem como das vítimas de excessos políticos e decisões ilícitas.

Hoje em dia, as tentativas de retratar os governantes russos como herdeiros de Stálin parecem na moda entre especialistas e políticos ocidentais. Mas o Kremlin, pelo contrário, tenta se dissociar dessa herança e encontrar oportunidades para o diálogo com os seus novos cidadãos, para quem a memória de deportação terá provavelmente sido, durante muitos anos, o principal elemento unificador.

De grande importância no contexto do decreto de Pútin é a menção aos armênios, um povo que tem a diáspora mais numerosa entre todas as diásporas no mundo. É bom ter em mente que a Armênia é um dos aliados mais consistentes da Rússia na Eurásia. Cabe lembrar ainda que os outros três povos – gregos, búlgaros e alemães – são também parceiros europeus importantes para os russos.

No entanto, mesmo reconhecendo a importância e atualidade do decreto de Pútin, não se pode esquecer que a integração da Crimeia não se limita apenas a passos simbólicos. O processo de integração dos novos cidadãos russos e de toda a península apenas começou. E o seu sucesso depende não só das intenções dos altos funcionários, mas também da prontidão que os líderes das várias comunidades e estruturas informais tenham para atuar segundo as regras comuns, para chegar a um acordo, em vez de fazer valer a sua exclusividade étnica.

É preciso de um sistema de política de harmonização entre os diferentes grupos étnicos e religiosos. Nesse contexto, muitos ativistas sociais terão seguramente suas próprias ideias até que ponto esse processo pode ir e onde deve parar.

Serguêi Markedonov é professor do departamento de Estudos Estrangeiros e Política Externa da Universidade Estatal de Humanas.

Fonte: Gazeta Russa

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