Da BBC Brasil em São Paulo
O discurso triunfal de Vladimir Putin nesta terça-feira representou mais do que o ápice do processo de anexação da Crimeia pela Rússia. Nele, o presidente russo indicou que não pretende avançar sobre o leste da Ucrânia e que é favorável à manutenção do país como entidade única – ainda que sem a Península no sul.
“Nós não queremos causar dano a vocês (ucranianos), ofender seus sentimentos nacionais (…) Nós não queremos a divisão da Ucrânia, não precisamos disso”, disse o líder em seu pronunciamento no Kremlin.
Ainda mais significativas do que tais palavras são as outras que Putin decidiu deixar de fora. Não citou nominalmente as cidades do leste da Ucrânia que recentemente viram confrontos envolvendo russos e ucranianos. Ele poderia ter feito isso, ameaçando as autoridades de Kiev. Poderia ter dito que a Crimeia seria só o começo.
Ao contrário, optou pela declaração mais genérica de que a Rússia, “como outros países, tem interesses nacionais que precisam ser levandos em consideração e respeitados”, indicando que “milhões de russos e russófonos vivem e viverão na Ucrânia, e a Rússia irá sempre defender seus interesses pelos meios políticos, diplomáticos e legais”.
Assim, o discurso também foi o momento em que o presidente russo tentou deixar mais claro para o Ocidente – a quem taxou de “irresponsável” por sua política na Ucrânia – quais são os tão temidos limites de sua estratégia nas ex-repúblicas soviéticas.
O presidente inúmeras vezes procurou legitimar a decisão de integrar a Crimeia na federação do ponto de vista histórico, lembrando do resultado “convincente” do referendo, da “injustiça histórica” que foi a descisão de Moscou de ceder o território à Ucrânia em 1954, e ressaltando que havia uma “ameaça” de avanço da Otan na região.
“Deixe-me lembrar a vocês as declarações que vem sendo feitas em Kiev sobre a iminente integração da Ucrânia à Otan. O que tal possibilidade representaria para a Crimeia e para Sevastopol? Que uma frota da Otan teria aparecido na cidade da glória militar russa; que uma ameaça teria surgido em todo o sul da Rússia”, afirmou.
Também, conforme o esperado, procurou desqualificar os argumentos do Ocidente contra a anexação, citando a independência de Kosovo da Sérvia em 1999 e afirmando que as intervenções no Iraque e no Afeganistão “violaram a lei internacional”.
“Nos disseram que houve uma invervenção, uma agressão na Crimeia por parte da Rússia. Eu não consigo pensar em um único exemplo na história em que uma intervenção tenha ocorrido sem um único tiro e sem vítimas”, disse o presidente.
Ainda que atacando o Ocidente, é possível interpretar que Putin, em seu discurso, ofereceu uma saída para a crise: que Kiev, e seus aliados, aceitem que a Crimeia foi “perdida”. Em troca, implícita, estaria a promessa de Moscou de não escalar a tensão entre as comunidades russas no leste da Ucrânia e em outros países.
“Deixe-me lembrar a vocês as declarações que vem sendo feitas em Kiev sobre a iminente integração da Ucrânia à Otan. O que tal possibilidade representaria para a Crimeia e para Sevastopol? Que uma frota da Otan teria aparecido na cidade da glória militar russa; que uma ameaça teria surgido em todo o sul da Rússia.”
Vladimir Putin
Se a interpretação é correta, surgem então duas perguntas: como a Ucrânia e o Ocidente irão reagir à proposta? E será que já não é tarde demais para evitar uma reação em cadeia das comunidades russas que sonham em retornar ao seio de Moscou?
Conflitos ‘adormecidos’
O que está ocorrendo agora indica que a estratégia de Putin pode ter aberto uma caixa de pandora em outras ex-repúblicas soviéticas onde ainda existem os chamados “conflitos adormecidos” envolvendo russos.
O primeiro sinal disso, como era esperado, veio da Transnístria, um território na prática independente no leste da Moldávia onde há uma quantidade significativa de russos. O local já foi palco de um conflito com a Moldávia em 1992 e em 2006 realizou um referendo em que 97,2% da população votou pela integração à Federação Russa.
O governo da Transnístria pediu a Moscou que aprove um projeto de lei que facilitaria sua anexação. Moscou pode ignorar os pedidos, o que poderia ajudar a acalmar os ânimos. Por outro lado, o governo da Moldávia pode aprovar um acordo de integração com a União Europeia (o mesmo que deu início à crise na Ucrânia em novembro). Isso poderia ser interpretado como uma afronta aos russos da Trasnístria e a Moscou, gerando mais tensão.
E há ainda outros “conflitos adormecidos”: a Ossétia do Sul, de fato independente desde a Guerra entre Geórgia e Rússia em 2008, pode reviver seu sonho de integração com a Ossétia do Norte, que é uma república da Federação Russa. Minorias russas nos países bálticos poderiam retomar suas velhas reinvidicações de mais direitos e até mesmo o Cazaquistão poderia ter problemas com sua numerosa comunidade russa.
A instabilidade na Ucrânia, em seu início em novembro, foi o reflexo de uma crise política ucraniana – o fim de um pacto velado entre elites pró-Rússia e pró-Ocidente que permitia que Moscou tivesse influência decisiva no alinhamento geopolítico do país.
Da mesma forma, a intensificação da crise, com o envolvimento russo na Crimeia, tem relação com a natureza da política doméstica e externa russa sob a batuta de Putin.
Desde a sua reeleição, em 2010, o presidente tem intensificado os esforços para sacramentar a nação russa e seus valores como o “centro” da identidade da Federação Russa, na qual outros grupos étnicos são aceitos desde que não entrem em choque com a preponderância dos russos. Tal esquema lembra a concepção de Homo sovieticus que ganhou força durante o regime de Josef Stalin.
Ao mesmo tempo e levando isso em conta, Putin ampliou os esforços para solidificar sua zona de influência nos países vizinhos que faziam parte da URSS. Veio a União Alfandegária com Belarus e Cazaquistão e a promessa de União Euroasiática. Nesses planos, a Ucrânia, por sua ligação história e identificação étnica com a Rússia, representava uma promessa fundamental.
Com a ruptura do pacto político em Kiev, Moscou decidiu responder primeiramente com o uso do soft power, incentivando a numerosa comunidade russa a se rebelar contra o que qualificou de “golpe”; e depois, optou pelo hard power, ampliando a presença militar que já existia na Crimeia – onde a semente da reunificação já estava plantada.
Assim, criou uma agitação na comunidade russa da Crimeia, do leste da Ucrânia e, agora, na Transnístria – gerando o risco de uma crise muito maior.
Reação do Ocidente
Quanto à possibilidade de o Ocidente aceitar que a Crimeia foi “perdida”, não há sinais de que a estratégia de sanções para pressionar Moscou esteja sendo abandonada. Muito pelo contrário.
Depois de UE e dos Estados Unidos terem anunciado o congelamento de bens e restrições às viagens de inúmeras autoridades russas e ucranianas, nesta terça-feira a Grã-Bretanha anunciou a primeira sanção comercial contra Moscou: cancelou todas as licenças de exportação de armas para a Rússia.
Autoridades americanas e europeias reiteraram sua visão de que o referendo na Crimeia foi ilegal e que novas sanções poderão ser tomadas a seguir, com um potencial prejuízo imenso tanto para a Rússia quanto para o Ocidente – o que, talvez, esteja atrasando a adoção de tais medidas.
Além do prejuízo financeiros com as sanções, continua no ar o quanto elas possam ser eficientes para pressionar Moscou. Pela reação das autoridades russas que já foram submetidas às restrições, não há motivos para acreditar que o Kremlin está preocupado.
Evidentemente, o fantasma de uma escalada militar na Ucrânia permanece assombrando a todos. A situação é tão tensa na Ucrânia que uma faísca poderia iniciar um incêndio. Basta um tiro ser disparado contra um soldado russo ou ucraniano na Crimeia.
Mas tal possibilidade sequer vem sendo citada por europeus e americanos, enfraquecidos demais para pensar em algo mais do que sanções. Se elas se mostrarem inúteis, é mais provável que o Ocidente aposte simplemente em um apaziguamento natural dos ânimos, que viria com o tempo: seria a aposta de que, sem novos desdobramentos, a situação vá se acalmando a ponto de possibilitar uma normalização das relações com Moscou.
O elemento-chave continua sendo Kiev. Como o governo interino pretende reagir se essa for a estratégia do Ocidente? Provavelmente teria que aceitar isso, mas poderia também adotar uma postura de tudo ou nada e enviar suas tropas para Crimeia, esperando que o apoio retórico do Ocidente se transforme em algo mais do que isso.
De qualquer forma, a anexação da Crimeia cria um precendente perigoso, com consequências ainda imprevisíveis.
*Rafael Gomez é mestre em estudos da Rússia e Europa Oriental pela Universidade de Birmingham, Reino Unido.
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