Empresas e crimes de guerra

Liberia-diamonds-2Companhias que pilham recursos em zonas de conflito devem responder na Justiça

JAMES G., STEWART (*)

THE NEW YORK TIMES – O Estado de S.Paulo

A pilhagem é um crime de guerra. Contudo, quando recursos naturais são o assunto, as empresas que operam em zonas de guerra estão completamente livres para saquear impunemente. Até agora.

Este mês, as autoridades suíças iniciaram uma investigação contra uma das maiores refinarias de ouro do mundo, a Argor-Heraeus, pelo saque de ouro da República Democrática do Congo. Em meados da última década, segundo ação criminal impetrada pelo grupo Track Impunity Always (Trial), de Genebra, que luta contra a impunidade, a empresa refinou três toneladas de ouro adquirido por companhias com sede na Grã-Bretanha e nas Ilhas do Canal, de uma empresa de Uganda, que por seu lado comprou o ouro de rebeldes congoleses.

O termo “pilhagem” lembra as barbaridades perpetradas séculos passados, mas, legalmente, significa saques em zona de guerra. Durante a 2.ª Guerra, muitas empresas roubaram recursos naturais da Europa ocupada para alimentar a máquina de guerra de Hitler. Alguns indivíduos, como o empresário alemão Paul Pleiger, foram levados à Justiça. Um tribunal militar em Nuremberg julgou-o por roubo – nesse caso a exploração ilegal de enormes minas de carvão da Polônia ocupada – e condenou-o a 15 anos de prisão.

Mas, desde então, tem-se verificado um silêncio ensurdecedor e enigmático a respeito. Os promotores com frequência acusam soldados e políticos de pilhagem de propriedades como obras de arte, dinheiro, aparelhos de TV e veículos. O Tribunal Penal Internacional condenou Omar Bashir, presidente do Sudão, e Jean-Pierre Bemba, ex-vice-presidente do Congo, por pilhagem (ele também enfrenta outras acusações sérias de crimes contra a humanidade, como assassinatos, estupros e tortura). Mas a pilhagem de recursos naturais na era moderna ainda é uma questão não resolvida, apesar de a exploração ilegal desses recursos estar financiando atrocidades em todo o mundo, especialmente depois do fim da Guerra Fria.

Os “diamantes de sangue” financiaram guerras em Angola e Serra Leoa, a exploração ilegal de madeira contribuiu para o derramamento de sangue na Libéria, e o coltan (minério formado pela mistura de tantalita e columbita) usado em celulares, laptops e consoles de jogos no Ocidente, alimentou a violência no Congo. Organizações como a Global Witness documentaram esses fluxos de recursos ilícitos durante anos, nomeando e lançando o descrédito sobre empresas ocidentais.

Em todas essas guerras os civis pagam muito caro. O número de vitimas no Congo é assombroso. Mais de cinco milhões desde 1998 e o país tem também a mais alta taxa de violência sexual. Levar aos tribunais os que cometem estupros, torturas, assassinatos e outros crimes contra a humanidade é fundamental. Mas precisamos também encarar crimes de guerra praticados pelas companhias que fomentam a violência em massa.

Em 2003, um painel da ONU sobre o roubo de pedras preciosas e minérios do Congo identificou25 empresas e indivíduos que contribuíram para o conflito. Logo depois, o Conselho de Segurança pediu para os Estados “conduzirem suas próprias investigações”, mas nenhum país respondeu. Impedimentos políticos certamente contribuíram para a inércia, mas também a incerteza legal sobre como conduzir esses processos.

Em 2007, deixei o cargo de promotor no Tribunal Penal Internacional no processo envolvendo a ex-Iugoslávia para escrever um guia contemplando a pilhagem aplicada aos recursos naturais. A decisão da promotoria suíça de investigar o crime é crucial. As acusações de pilhagem são dirigidas à companhia como uma entidade legal. Empresas não podem ser presas, é claro, mas podem ser estigmatizadas (até fechadas) por uma condenação penal. E podem incorrer em pesadas multas e outras penalidades. Outros países podem, e devem, seguir o exemplo suíço.

Além de reduzir o fluxo de dinheiro para grupos armados violentos que operam nessas guerras por recursos, essas ações judiciais podem enfraquecer as recentes críticas feitas por alguns líderes africanos, como o presidente Paul Kagame, de Ruanda, que qualificou o Tribunal Penal Internacional como uma nova forma de imperialismo em razão de sua ênfase, até agora, na África. Acionar judicialmente as empresas e não apenas os senhores da guerra provará que ele está errado.

O escritor Joseph Conrad descreveu a pilhagem colonial dos recursos naturais congoleses como “a mais vil disputa, que desfigurou para sempre a história da consciência humana”. No passado, os Estados ocidentais foram cúmplices dessa injustiça. Se o caso Argor-Heraeus indicar o início do fim da impunidade corporativa em zonas de guerra, ela acabará por completo em breve. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

(*) JAMES G., STEWART É JURISTA E EX-PROMOTOR DO TPI

Fonte: The New York Times (TNYT) via O Estado de São Paulo (OESP)

1 Comentário

  1. “As acusações de pilhagem são dirigidas à companhia como uma entidade legal. Empresas não podem ser presas, é claro, mas podem ser estigmatizadas (até fechadas) por uma condenação penal.”

    O jurista poderia ter-nos brindado com exemplos concretos sobre a origem destas empresas, ou então, da forma como podem ser “estigmatizadas”.
    Seria o caso de começar por notórias empresas de material esportivo, como Nike e Adidas, que não produzem guerras diretamente, mas contribuem de tal forma para a miséria no sudeste asiático, que muitos chegam a usar a expressão “crimes contra a humanidade” para descrever o tamanho da influência destas corporações. Depois seguiríamos com as empresas que trabalham com fertilizantes/agrotóxicos e que não devem nada as anteriores em termos de crimes penais e ambientais mundo afora. O problema é que bateríamos em dois muros: (1) o discurso do “empreguismo”, onde, aos governantes, é melhor a população ganhar 1 dólar por dia no trabalho do que nada, garantindo a ocupação das pessoas, mesmo na miséria; (2) nos departamentos de marketing que mostram estas empresas como as salvadoras do mundo, as financiadoras de pesquisa em prol da qualidade de vida, as que tornam o mundo melhor.

    “…essas ações judiciais podem enfraquecer as recentes críticas feitas por alguns líderes africanos, como o presidente Paul Kagame, de Ruanda, que qualificou o Tribunal Penal Internacional como uma nova forma de imperialismo em razão de sua ênfase, até agora, na África.”

    Paul Kagame está certo. Com exceção de alguns dirigentes sérvios, este tribunal só se ocupa com ditadores da África. Aliás, ditadores sem dinheiro da África subsaariana, pois Kadafi jamais foi levado a este tribunal. A Ethiópia e a Somália são administradas por facínoras que gastam rios de dinheiro em equipamento militar, e quase toda a população destes países está abaixo do nível da miséria. Mas quando surgiu a pirataria no litoral da Somália, navios de guerra de todo o mundo se encaminharam ao local para que a “rota marítima” se mantive-se segura. Rota marítima que abastece quem? Se alguém aqui se der o trabalho de pesquisar na internet, vai descobrir que os piratas somalis existem por conta da miséria extrema do país, que produziu um volume de poluição marítima absurdo (através destas tais corporações) e destruiu a fauna marinha local e o ramo pesqueiro. Estes desocupados então voltaram-se para a pirataria. Isso não é um crime contra a humanidade? Ou estariam estes soberbos juízes tão atados a suas origens nacionais que seriam incapazes de levar justiça a todos os cantos do mundo? A propósito, a ex STF Helen Greice (outra soberba) tentou fazer parte dele a uns dois anos atrás, após sair do supremo. Tomou bomba.

    Então Srs. se é necessário colocarmos contra a parede corporações que atuam a margem da lei de acordo com seus mais íntimos interesses empresariais, não importando o país, comecemos eliminando aquela velha união umbilical existente entre o meio empresarial e os dirigentes políticos de todos os países. Quando acontecer, talvez tenhamos realmente possibilidade de falar em justiça internacional. Até lá será teremos apenas um repositório moral capenga e mal disfarçado de justiça.

    A quem se interessar, segue link de vídeo documentário relativo a ação das corporações mundo afora, bem a propósito com o tema do tema deste post

    http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=w3JB99zqgAc

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