E ELE NÃO DISSE “ÁFRICA”

“Meio século atrás, à sombra do Memorial de Lincoln, em Washington, Martin Luther King pronunciou 1.667 palavras. Nenhuma delas era “África” — ou “africanos”, ou mesmo “afro-americanos”. Nessa ausência encontra-se a prova da atualidade do discurso mais célebre do século XX. Deveríamos ouvi-lo novamente, prestando atenção no contraste entre aquela linguagem e a utilizada hoje pelos arautos das políticas de raça.

No discurso de 28 agosto de 1963, os negros eram definidos por referências situacionais (escravidão, segregação, pobreza), não por uma essência identitária (raça, etnia, cultura ou origem).

Americanos, não “afro-americanos” — isso são os negros, na linguagem de King. Os negros, que experimentam “o exílio em sua própria terra”, marcharam à “capital de nossa nação” para cobrar uma promessa de igualdade escrita “pelos arquitetos de nossa república” na Declaração de Independência e na Constituição.

A sentença nuclear do discurso de King não solicitava do reconhecimento de identidades étnicas ou de direitos raciais. Ela exigia que os Estados Unidos aplicassem o princípio, contido nos seus documentos fundadores, segundo o qual “todos os seres humanos são criados iguais”. A igualdade entre indivíduos livres de todas as cores, não um acordo político entre coletividades raciais distintas, era a reivindicação do 28 de agosto de 1963. Eis por que aquele dia permanece tão atual, lá e aqui.

Eu também tenho um sonho. Sonho com o dia em que milhões de exemplares do discurso de King sejam distribuídos, clandestinamente, como material subversivo nas escolas brasileiras.”  Demétrio MagnoliMartin_Luther_King_-_March_on_Washington

E ele não disse ‘África’ 

A linguagem de King não desafiava apenas as leis de segregação, seu alvo imediato, mas uma narrativa sobre a origem dos EUA, seu alvo distante.

DEMÉTRIO MAGNOLI (*)

Artigo publicado em 29/08/13

Meio século atrás, à sombra do Memorial de Lincoln, em Washington, Martin Luther King pronunciou 1.667 palavras. Nenhuma delas era “África” — ou “africanos”, ou mesmo “afro-americanos”. Nessa ausência encontra-se a prova da atualidade do discurso mais célebre do século XX. Deveríamos ouvi-lo novamente, prestando atenção no contraste entre aquela linguagem e a utilizada hoje pelos arautos das políticas de raça.

King aludiu à Proclamação de Emancipação, de Abraham Lincoln, “um grande farol de esperança para milhões de negros escravos”, mencionou as “algemas da segregação” e as “correntes da discriminação” que, cem anos depois, ainda aleijavam “a vida dos negros”, e falou sobre a “solitária ilha de pobreza, em meio a um vasto oceano de prosperidade material” na qual viviam os negros. No discurso de agosto de 1963, os negros eram definidos por referências situacionais (escravidão, segregação, pobreza), não por uma essência identitária (raça, etnia, cultura ou origem).

Americanos, não “afro-americanos” — isso são os negros, na linguagem de King. Os negros, que experimentam “o exílio em sua própria terra”, marcharam à “capital de nossa nação” para cobrar uma promessa de igualdade escrita “pelos arquitetos de nossa república” na Declaração de Independência e na Constituição. A luta para resgatar aquela “nota promissória” ergueria “nossa nação das areias movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade”. Ela não deveria “conduzir-nos a desconfiar de todas as pessoas brancas”, pois “muitos de nossos irmãos brancos (…) compreenderam que o destino deles está preso ao nosso” e que “a liberdade deles está inextricavelmente ligada à nossa”.

A linguagem de King não desafiava apenas as leis de segregação, seu alvo imediato, mas uma narrativa sobre a origem dos Estados Unidos, seu alvo distante. Tal narrativa, uma versão da ideia do melting pot, coagulara-se no fim do século XIX como reação à libertação dos escravos e como chave lógica para a segregação racial oficial. Ela descrevia os Estados Unidos como uma nação de colonos brancos rodeada por minorias raciais (indígenas, asiáticos e negros africanos). No discurso que completa 50 anos, King contestava todo esse cortejo de noções identitárias emanadas do pensamento racial. Não, dizia, a nação é outra coisa — é aquilo que está escrito nos textos fundadores!

A contestação de King separava-o de uma longa tradição da política negra nos Estados Unidos. W. E. B. Du Bois entalhara o mito da raça na fachada da venerável NAACP, principal organização negra americana. Ele não acreditava no valor explicativo de “grosseiras diferenças físicas de cor, cabelos e ossos”, mas invocava “forças sutis” que “dividiram os seres humanos em raças claramente definidas aos olhos do historiador e do sociólogo”. “Nós”, dizia Du Bois, “somos americanos por nascimento e cidadania” e “em virtude de nossos ideais políticos, nossa linguagem, nossa religião”. Contudo, acrescentava, “nosso americanismo não vai além disso” pois, “a partir desse ponto, somos negros, membros de uma raça histórica que se encontra adormecida desde a aurora da criação, mas começa a acordar nas florestas escuras de sua pátria africana”. Afro-americanos: o termo, cunhado muito depois, na bigorna do multiculturalismo, foi concebido no início do século XX como um fruto do pensamento racial. A atualidade do discurso de King encontra-se precisamente na sua ruptura com a visão de Du Bois, que era um reflexo da narrativa racista sobre a nação branca.

Du Bois, revisitado pelo multiculturalismo, não o universalismo de King, é a fonte das políticas oficiais de raça no Brasil. Um documento de “orientações curriculares” para a “educação étnico-racial” da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, datado de 2008, sintetiza as diretrizes que, a partir do MEC, disseminam entre os jovens estudantes a noção de divisão da humanidade em raças. O texto deplora a vasta diversidade de cores utilizada pelos indivíduos em declarações censitárias, que contribuiria “para diminuir o potencial político da população afro-brasileira”.

“A pluralidade de cores no país diz quem é o povo brasileiro, mas não sua identidade étnico-racial”, segundo os sábios da Secretaria Municipal de Educação. A solução para a carência identitária residiria numa especial reinterpretação das palavras dos declarantes. Operando como “um agente social de reconhecimento eficaz do outro”, transformando-se “em alguém mais ativo no processo de identificação”, o recenseador produziria em tabelas e gráficos a “população afro-brasileira” que não emerge das autodeclarações. Em termos diretos, trata-se de manufaturar uma fraude censitária com a finalidade de gerar as tais “raças claramente definidas aos olhos do historiador e do sociólogo” de que falava Du Bois. Destinado a professores, o texto veiculava a mensagem inequívoca de que, na sala de aula, a linguagem da raça é um imperativo absoluto, em nome do qual deve-se ignorar a informação censitária factual.

“Eu tenho o sonho de que meus quatro pequenos filhos viverão, um dia, numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo teor de seu caráter”. A sentença nuclear do discurso de King não solicitava do reconhecimento de identidades étnicas ou de direitos raciais. Ela exigia que os Estados Unidos aplicassem o princípio, contido nos seus documentos fundadores, segundo o qual “todos os seres humanos são criados iguais”. A igualdade entre indivíduos livres de todas as cores, não um acordo político entre coletividades raciais distintas, era a reivindicação do 28 de agosto de 1963. Eis por que aquele dia permanece tão atual, lá e aqui.

Eu também tenho um sonho. Sonho com o dia em que milhões de exemplares do discurso de King sejam distribuídos, clandestinamente, como material subversivo nas escolas brasileiras.

(*) Demétrio Magnoli é sociólogo 

 

Fonte: O Globo, Opinião, Página 21, Quinta-Feira, 29/08/2013   

9 Comentários

  1. Primeiro: recomendo a todos que vejam o discurso de Martin Luther. Tem versões legendadas no Youtube (I have a dream).

    Segundo: Martin Luther usa sim o termo “negro” como definição étnica, mas deixa claro que essa definição não pode ser usada como divisor entre as pessoas, pois todos nascem iguais segundo a constituição dos USA e a religião do orador. Aliás, a religiosidade de Martin Luther é coisa pouco comentada e, nos últimos anos os “intérpretes” de seu discurso usam muito a expressão “direitos civis” e não “direitos para negros também” quando tentam classificar o movimento, pois a teologia dele afirma que “Deus fez todos iguais”.

    Terceiro: Demétrio Magnoli é Geógrafo e não Sociólogo. Ele só é apresentado como Sociólogo porque dá mais status. E é bem fraquinho em suas análises. Não fosse aparecer no programa GloboNews Painel, dia sim outro, também durante o governo de Lula ninguém saberia da existência dele. Tem trabalhos dele disponíveis em .pdf na internet.

    Quarto: as diretrizes do MEC não introduziram e nem falam em racialismo, mas em apresentar ao aluno toda a gama étnica que compõe a população brasileira e suas características sociais, políticas, econômicas, etc. Esse papo de “racialismo” é criação da oposição sem discurso e nem idéia que temos por aqui. Esse papo furado de politicamente correto (que nunca pegou no Brasil), é papo furado de pseudo-sociólogo que tem um orgasmo cada vez que fala “lulismo”. Coisa de gente atrasada. É lógico que Martin Luther não usaria a expressão “afro-amercano”. Ela foi inventada na década seguinte a sua morte (1970).

    Quinto: o sonho do Demétrio não vai se concretizar, sabem porque? Porque é um discurso referência, proferido por alguém que não faz parte do referencial social brasileiro. E nisso o Demétrio é bem cínico pois já vi ele afirmando justamente o contrário sobre o discurso de inclusão de negros, índios, etc, como algo vazio e inútil, mentiroso.

    Num país que tem tradição de fortes pensadores como Florestan Fernandes, Roberto Damata, Fernando H. Cardoso, Gilberto Freire, etc, pessoas que tem respeito e importância mundial, Demétrio é um infeliz retrato do que produz atualmente nosso sistema educacional. Um vexame.

  2. LUCENA
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    Martin Luther King,um homem que sobe escolher o bom combate,um home a frente da sua época,que utilizou dos sofrimento de uma moça negra que não quis sair do banco de um ônibus só porque um branco mandou que esta saísse.
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    Para os conservadores que vivem na resistência,isso seria uma fronta a sua estupidez,coisa de esquerdista ou coisa parecida…vai entender esses mamíferos….Rsrsrs.
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    Pois foi um desses extremistas doentes,que só vivem cativando o ódio,o preconceito contra negros,favelados,índios,nordestinos,árabes,…etc,que covarde mente tirou a vida de um grande homem,como o saudoso Martin Luther King.
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    Para muitos de hoje,a luta de Luther King seria coisa de esquerdista e por isso deveria morrer,como muitas das vezes,alguns vermes apregoam por ai.

  3. acho que ele é os dois sociologo e geografo. so sei que fez o doutorado em geografia humana. mas não achei a porcaria do lattes dele. não sei como um pesquisador pode não ter lattes. parece querer esconder algo.

    de qualquer maneira quanta vergonha alheia. eu sou geografo, não sou doutor e já tenho mais contribuições cientificas originais que esse magnoli.

    alem disso ele assinou como sociologo por que essa opnião acima não é geografica. não contempla nenhuma dimensão espacial e portando é sociologica mesmo.

    um lixo de opnião aliás.

    • Ah, Sr. deve ser um daqueles “doutores” que considera filosofo apenas aqueles que tiveram assento em academias de filosofia… quem pensa pelas próprias pernas e nunca esteve em um banco escolar deixa de ter o direito natural ao livre arbítrio… o que diria Sócrates acerca dessa sua postura ???… “Sócrates concluiu então que, de certa forma, ele também era um parteiro. O conhecimento está dentro das pessoas (que são capazes de aprender por si mesmas). Porém, eu posso ajudar no nascimento deste conhecimento. Concluiu ele. Por isso, até hoje os ensinamentos de Sócrates são conhecidos por maiêutica (que significa parteira em grego).” … já que a opinião do autor não é satisfatória V. Sapiência poderia começar postando algo sobre o tema para preencher as supostas lacunas e falhas do subscritor do texto acima… ajudaria muito os humildes leitores avidos da verdade de vossa lavra… saudações…

  4. Ridículo…. não representa a cultura brasileira.

    É mais uma palhaçada pra descaracterizar ainda mais os resquícios de brasilidade.

    Que vai além desta cultura segregacional que até na origem é diferente da brasileira.

    Antes de lerem sobre autor gringo… Lêem Paulo Bonavides… José Afonso da Silva… Uadi Lammêgo Bulos…

  5. Demétrio Magnoli…Sociólogo medíocre, mas sempre apto a aparecer nas televisões e jornais… Piada. Opina sobre tudo, e informa de maneira rasteira. Pois… Há quem precise de uma informação de manual, ou de pé de livro, que é o que sabe, mas aqueles que como eu precisam de conteúdo, sabem muito bem, que nada substancioso terá Magnoli como autor…

    😉

    • Claro, ele não é um esquerdista atado a preceitos vergonhosos… medíocre mesmo e rasteiro é quem não possui subsídios intelectuais, morais e culturais para fazer senão uma ode ordinária, onde o mau-caratismo deslavado de quem nasceu perneta e cai para a esquerda a qualquer passo que dá, não importando a direção, se mostra como realmente é: perverso e ignóbil… trágico para vc… pela sua língua será medido… volte a ler seus panfletários da carta estatal e mauros santa paciência que é o seu desvario comezinho que nada acrescenta senão deturpa ainda mais o pouco que sobrou de dignidade nessa carcaça velha…

  6. Ouvi quando bem jovem o discurso de Luther King em 1963.Inda que meu conhecimento de ingles na epoca era bem fraco, sua oratoria me emocionou. Nunca me esquecerei aquela noite na cama com um radiozinho a pilha bem proximo ao ouvido, ondas curtas, ouvindo-o no Voz da America. Mas tarde quando meu conhecimento de ingles melhorou, ouvi o discurso varias vezes, minha atitude mudou. O estilo de oratoria era belo, creio que nao se faz esse tipo de oratoria em ingles hoje em dia. Mas o conteudo? Nao. O homem nunca superou a ideologia que os brancos nortes americanos passaram aos descendentes de africanos. Dai a limitacao de sua politica. Tal qual Nelson Mandela, era tolerado porque era inofensivo, nao era radical. Trelava os afro-americanos aos sistema que os transformavam em subhumanos. Dai ser tolerad pela classe liberal branca norte americana. Tolerado mas nao respeitado. O FBI seguia-lhe os passos e passava as informacoes de sua vida privada ao conhecimento da familia John Kennedy na Casa Branca. O homem era hipocrita, como quase todos os pregadores de moral o sao. Pregava o que nao praticava. Frequentador de prostibulos onde sempre encontrava com uma prostituta branca para orgia. Dai Jacquelina Kennedy o despresava. Sentia escarnio por ele.Pessoalmente da oratoria afronorteamericana da epoca prefiro Malcon X, principalmente o discurso onde explica a diferenca entre House Negro and Field Negro. Pode ser ouvido no YouTube. Se no Brasil hoje Du Bois esta na moda nas universidades, isso apenas mostra que no Brasil a questao africana ainda esta longe de alcancar o nivel que ela atingiu nos Estados Unidos, Inglaterra e Caribe. No Brasil ainda se diz que nao ha racismo. Nao ha, porque no Brasil o preto ainda “sabe do seu lugar”, ainda se diz que “preto com alma branca. Garvey, Tony Martin, Molet Kefi Assante e outros afrocentristas pos-1980 fala um discurso mais atual e creio que sao discursos com mais ressonance com a juventude africana da diaspora nos Estados Unidos, Inglaterra e Caribe

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