APESAR DE PODEROSO, PREMIÊ TURCO PODE SER DERRUBADO PELA SOBERBA

 
 recep-tayyip-erdogan
“O ranço crescente de autoritarismo, com três vitórias eleitorais retumbantes, que cerca o governo neoislâmico do primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, se faz acompanhar de um cheiro inconfundível de húbris, soberba desmedida que pode acabar levando-o à ruína.”

 

DAVID GARDNER
DO “FINANCIAL TIMES”, EM BEIRUTE

Depois de mais de uma década como primeiro-ministro da Turquia e três vitórias eleitorais retumbantes, Recep Tayyip Erdogan é senhor de tudo o que contempla –e se comporta como tal.

Mas o ranço crescente de autoritarismo que cerca seu governo neoislâmico se faz acompanhar de um cheiro inconfundível de húbris –soberba desmedida que pode acabar levando à ruína.

De fato, os protestos contra a demolição do parque Gezi para a construção de mais um shopping em Istambul estão deixando isso muito claro para o premiê.

No entanto, se esses protestos fossem relacionados apenas ao espaço verde, não teriam se espalhado, como rastro de pólvora, de Istambul para dezenas de outras cidades. Erdogan pode ser poderoso, mas este é um momento delicado para ele.

Seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), reconstruído a partir das ruínas de dois partidos islâmicos proscritos para se converter numa versão muçulmana da democracia cristã, vem cumprindo muito do que seu nome promete: mais que dobrou a renda per capita, distribuindo a riqueza e a saúde, construindo escolas e rodovias.

Outra maneira de encarar o AKP é como um partido de donos de construtoras que já se acostumaram a demolir qualquer coisa que se interponha em seu caminho.

Apenas em Istambul, há planos para a construção de um aeroporto, outra ponte sobre o Bósforo e uma mesquita no alto de uma colina, para deixar à sombra as joias de arquitetura islâmica.

O establishment comandado por Erdogan colocou de escanteio político as elites seculares que antes comandavam a república criada por Mustafa Kemal Atatürk e se sente livre para mudar por completo o currículo escolar, sufocar a independência da Academia de Ciências turca, encarcerar jornalistas ou restringir o consumo de álcool.

A hostilidade contra o que muitos veem como um ataque ao seu modo de vida se cristaliza em protestos de rua porque a oposição secular se mostra impotente, especialmente o Partido Republicano do Povo, herdeiro de Atatürk.

Erdogan está ansioso por selar uma paz com a inquieta minoria curda turca e então se tornar presidente no próximo ano com poderes aumentados. Com uma agenda tão ambiciosa, seria insensatez de sua parte abrir um novo front de disputas. A húbris pode não ser uma oposição organizada, mas tem o dom de rebaixar os poderosos.

Tradução de CLARA ALLAIN

Fonte: Folha