DAVID GARDNER
DO “FINANCIAL TIMES”, EM BEIRUTE
Mas o ranço crescente de autoritarismo que cerca seu governo neoislâmico se faz acompanhar de um cheiro inconfundível de húbris –soberba desmedida que pode acabar levando à ruína.
De fato, os protestos contra a demolição do parque Gezi para a construção de mais um shopping em Istambul estão deixando isso muito claro para o premiê.
No entanto, se esses protestos fossem relacionados apenas ao espaço verde, não teriam se espalhado, como rastro de pólvora, de Istambul para dezenas de outras cidades. Erdogan pode ser poderoso, mas este é um momento delicado para ele.
Seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), reconstruído a partir das ruínas de dois partidos islâmicos proscritos para se converter numa versão muçulmana da democracia cristã, vem cumprindo muito do que seu nome promete: mais que dobrou a renda per capita, distribuindo a riqueza e a saúde, construindo escolas e rodovias.
Outra maneira de encarar o AKP é como um partido de donos de construtoras que já se acostumaram a demolir qualquer coisa que se interponha em seu caminho.
Apenas em Istambul, há planos para a construção de um aeroporto, outra ponte sobre o Bósforo e uma mesquita no alto de uma colina, para deixar à sombra as joias de arquitetura islâmica.
O establishment comandado por Erdogan colocou de escanteio político as elites seculares que antes comandavam a república criada por Mustafa Kemal Atatürk e se sente livre para mudar por completo o currículo escolar, sufocar a independência da Academia de Ciências turca, encarcerar jornalistas ou restringir o consumo de álcool.
A hostilidade contra o que muitos veem como um ataque ao seu modo de vida se cristaliza em protestos de rua porque a oposição secular se mostra impotente, especialmente o Partido Republicano do Povo, herdeiro de Atatürk.
Erdogan está ansioso por selar uma paz com a inquieta minoria curda turca e então se tornar presidente no próximo ano com poderes aumentados. Com uma agenda tão ambiciosa, seria insensatez de sua parte abrir um novo front de disputas. A húbris pode não ser uma oposição organizada, mas tem o dom de rebaixar os poderosos.
Tradução de CLARA ALLAIN