ANÁLISE: FRONTEIRAS NÃO MERECEM SER TRATADAS COMO “PERIFERIA”

45BISFERNANDO RABOSSI
ESPECIAL PARA A FOLHA
Uma das mudanças significativas da última década no âmbito governamental tem sido a adoção de uma visão integral da faixa de fronteira.

Formulada inicialmente no Ministério da Integração Nacional à luz da Proposta de Reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira apresentada em 2004, essa visão foi reformulada em 2011 com o Plano Estratégico de Fronteiras.

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Coordenado pelos Ministérios da Justiça, da Defesa e da Fazenda, o plano mudou da ênfase anterior dada ao desenvolvimento para a “prevenção, controle, fiscalização e repressão dos delitos transfronteiriços e dos delitos praticados na faixa de fronteira”.

A mudança reflete o lugar que as fronteiras passaram a ocupar na agenda política, tanto para atender a demanda interna –a denúncia da procedência externa de drogas e armas nas cidades do país– como para se posicionar internacionalmente.

Como as fronteiras brasileiras são longas, controlá-las torna-se um imenso desafio que inclui atualmente a integração das instituições de segurança, o seu aparelhamento, o uso das Forças Armadas e as operações coordenadas do outro lado da fronteira.

Os fluxos através das fronteiras não são simplesmente ilícitos, mas eles se desenvolvem nos limites de mercados –de cargas impositivas diferenciais, de leis laborais, de regimes monetários, das definições do que é permitido e o que é proibido.

O problema de pensar o controle fronteiriço somente como uma questão de contenção pode perder de vista esse caráter singular que têm os limites internacionais, tomando a faixa de fronteira como a periferia do Brasil.

A experiência nas grandes cidades brasileiras mostra que o tratamento das periferias como as áreas problemáticas da segurança pública têm contribuído à amplificação dos problemas em vez da sua solução. Talvez o maior potencial das políticas atuais seja tornar a faixa de fronteira uma área conhecida e mais bem integrada ao país.

FERNANDO RABOSSI é antropólogo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Fonte: Folha 

 

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Na semana passada, um grupo do exército brasileiro fazia patrulha de barco no rio Acre, na tríplice fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru. Os militares pararam uma canoa com ribeirinhos, em busca de pasta de coca ou contrabando. Enquanto eles vistoriavam o barco, o militar boliviano Bento Gonzalez atravessava tranquilamente a pé, por trás dos militares, pelo igarapé que separa o Peru e a Bolívia. Tinha ido ao Peru comprar macarrão.

“Tem documentos?”

“Não, não é preciso. Sempre cruzo para o Peru e para o Brasil sem documentos.”

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Na fronteira entre as cidades de Bolpebra, na Bolívia, Iñapari, no Peru, e Assis Brasil, no Brasil, não há nenhum marco e nenhuma fiscalização. A única fiscalização ocorre no posto da Receita Federal e Polícia Federal em Assis Brasil –mas, depois das 20h, não tem ninguém trabalhando lá.

“Não temos efetivo suficiente para fazer o turno da noite”, justifica o delegado Flávio Henrique de Avelar, da Polícia Federal no Acre. Cerca de 20% da cocaína do mundo é produzida na Bolívia, 42% no Peru e 38% na Colômbia, segundo o Ministério da Defesa. Estima-se que mais de 70% da cocaína consumida no Brasil venha da Bolívia.

Assis Brasil, por onde entram também os refugiados haitianos, é uma boa amostra do desafio que representa patrulhar os 16,8 mil quilômetros de fronteira brasileira. As Forças Armadas iniciaram no dia 18 de maio a Operação Ágata 7, sua maior mobilização desde a Segunda Guerra Mundial –são cerca de 25 mil militares e 10 mil civis de órgãos como a Polícia Federal, espalhados pela fronteira, do Oiapoque, no Amapá, ao Chuí, no Rio Grande do Sul.

As operações Ágata são parte do Plano Estratégico de Fronteira, cujo objetivo é desenvolver uma ação coordenada entre as Forças Armadas, Polícia Federal, Força Nacional e Polícia Rodoviária Federal nas áreas de fronteira e inibir tráfico e outros crimes durante as três semanas de operação.

Folha acompanhou quatro missões da operação, no Acre e em Rondônia, perto da fronteira com a Bolívia e o Peru, durante uma semana. Ficou claro que policiar a fronteira do Brasil é uma tarefa muito difícil.

Há acordos entre cidades para estimular a integração das populações nas fronteiras, e muitas vezes não se fiscaliza logo na divisa para não gerar burocracia. Mas a ideia é que a fiscalização ocorra a alguns quilômetros da divisa, e issomuitas vezes não ocorre.

Um bom exemplo é a ponte que liga Puerto Evo Morales, na Bolívia, e Plácido de Castro, no Brasil, onde o tráfego de carros, bicicletas e pedestres é intenso. Brasileiros cruzam a fronteira para comprar nas lojas baratas dos bolivianos, e os bolivianos, para usar serviços como escola e hospital no Brasil.

Não há nenhum tipo de fiscalização. Não há postos da Polícia Federal, nem da Receita Federal. Entra e sai quem quer, levando o que quiser.

O primeiro posto de fiscalização 24 horas fica a 70 quilômetros dali e, antes dele, há estradas de terra que permitem desviar da vistoria.

UTOPIA

No rio Abunã, que separa os dois países, é a mesma coisa. São dezenas de igarapés e estradas de terra. Segundo policiais, passa gente em canoas e batelões levando escondidos cigarros, pasta base de coca e outros produtos contrabandeados. Uma caixa de cigarros, com 500 maços, é comprada por R$ 350 na Bolívia e revendida por R$ 800 no Brasil.

“Dá uma olhada aqui nas margens do rio, não tem nada, qualquer um pode passar; a gente não tem efetivo para estar em todos os lugares”, diz o tenente André Lima Costa, 28 anos, comandante do pelotão especial de fronteira de Plácido de Castro, na divisa com a Bolívia. “É uma utopia vigilância 100% da fronteira”.

Patrulhar as fronteiras não é atribuição primordial das Forças Armadas. Isso cabe à Polícia Federal. Desde 2010, no entanto, leis complementares dão às Forças Armadas poder de polícia na faixa de 150 quilômetros a partir da fronteira – eles podem fazer policiamento e prender em flagrante. Mas sua ação é apenas complementar à das polícias.

Uma das funções das Forças é ajudar na logística e segurança de civis de agências como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

“Nós apreendemos três tratores, motosserras e equipamentos de madeireiros ilegais”, contou o tenente Rogério Andrade de Carvalho, que chefiou um grupo de combate em uma missão na selva da reserva Mapinguari, perto da fronteira com a Bolívia. “Mas nós não estamos aqui nos outros 360 dias do ano.”

MADEIRA

O parque Mapinguari, uma reserva ambiental federal, tem 18 mil quilômetros quadrados –quase do tamanho do estado de Sergipe. Mas apenas dois agentes do ICM Bio –William Assunção e Claudineia Lima– são responsáveis pela fiscalização da reserva inteira. Resultado: quase todo dia sai do parque um caminhão carregado de toras de ipê, cerejeira, jequitibá, cedro ou roxinho, segundo os próprios agentes dizem.

Na cidade de Extrema, ao lado do parque, há apenas 6000 habitantes –e 38 madeireiras. “Como a região depende de madeira e quando fazemos missões isso causa grande impacto, precisamos de apoio do exército”, diz Assunção.

Em Cruzeiro do Sul, no Acre, há peruanos cruzando a fronteira para “roubar” mogno do parque nacional da Serra do Divisor, segundo agentes.

Grande parte do contrabando e tráfico drogas de maior volume vem pelas estradas, mas faltam equipamentos e tecnologia para o policiamento. No dia 19 de maio, em um bloqueio na BR 364, que liga Porto Velho a Rio Branco, os militares interceptaram um carro com 20 quilos de cocaína.

Mas na missão, que também era parte da Operação Ágata, apreensões eram a exceção. “Nós não temos scanner aqui. Não dá pra saber tudo o que vai dentro dos caminhões”, diz o major André de Melo Franco. “A ideia é criar um clima de segurança, não temos a pretensão de pegar tudo.”

NOVO SISTEMA

Uma das principais apostas dos militares para tornar o policiamento mais efetivo é o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), um conjunto de radares nas fronteiras cujo valor total deve chegar a R$ 12 bilhões.

A Embraer ganhou a licitação para a primeira fase de implantação do sistema, que prevê o monitoramento de 650 km de fronteira terrestre na faixa que acompanha a divisa do Mato Grosso do Sul com o Paraguai e com a Bolívia. “Nossa fronteira é muito extensa e os rios, como divisa física, não oferecem nenhum obstáculo, tudo isso facilita a entrada de drogas”, diz o general Ubiratan Poty,comandante da 17a brigada de infantaria de selva.

A coca chega dentro de pneus, saltos de sapatos, mochilas, fundo de canoa, porta-malas, motor e pequenas aeronaves. “Mas estamos dando nossas respostas, aumentando o efetivo, criando mais pelotões de fronteiras.”

Existe uma resignação em relação à dificuldade de se policiar uma fronteira tão extensa. “Eles não são bobos, fogem pelas estradas de terra, igarapés; só pegamos mesmo os mais amadores, ou quando temos alguma informação específica sobre entrada de alguém”, diz um oficial. “Nem os EUA, que só têm 3100 quilômetros de fronteira com o México, têm todo aquele dinheiro e não têm selva, conseguem evitar que os mexicanos entrem.”

Para Daniel Hirata, pesquisador da UFRJ que participa de um estudo de mapeamento das fronteiras brasileiras para o Ministério da Defesa, operações pontuais não resolvem o problema. “É necessário ter um trabalho investigativo na fronteira, reforçar a inteligência, e o desenvolvimento econômico na faixa de fronteira.”

Fonte: Folha