Francisco Carlos Teixeira
O “pansari” norte-coreano, um tipo de ópera regional emotiva e dramática, continua sendo tocado, cada vez em tom mais belicoso e alto. Mesmo que consideremos a “fala” da liderança de Pyongyang como “retórica bélica”, sempre existe o risco de um lapso momentâneo da razão.
Uma tradicional forma de música da Coréia é “pansori”, que muitos confundem, com uma assimilação indevida, a ópera chinesa. Na verdade, a “ópera coreana”, mais simples, emotiva, com fortes tons dramáticos, é uma velha tradição coreana. O “pansori” é uma música de fundo percussionista – tocada por um só músico ou pelo próprio cantor ou cantora –, com um grande tambor, e um vocalista, que canta ao som de seu tambor uma longa e conhecida história. O jovem líder norte-coreano – Kim Il-un – parece, malgrado suas contínuas condenações ao passado feudal, ter se tornado em exímio executante do “pansori”: a longa e repetitiva canção ao som do grande tambor. Neste caso um tambor de guerra.
O contexto da atual crise
Todos os anos os Estados Unidos e a República da Coreia (ou Coreia do Sul) realizam vastas manobras militares conjuntas – regularmente denominadas normalmente de “Team Spirit” – ou com denominações especificas dependendo da composição e objetivos das forças envolvidas. Tais exercícios, além dos objetivos próprios e claros – testar a prontidão das tropas e manter sua preparação – possuem um importante papel político, como se expressa no seu próprio título (de “Team Spirit”).
Trata-se de reforçar a garantia dada por Washington a Seul do permanente comprometimento dos Estados Unidos com a segurança sul-coreana. Para isso os Estados Unidos mantêm cerca de 37 mil combatentes em território sul-coreano, além de vasta panóplia militar – cerca de 100 caças de combate – e um porta-aviões próximo ao litoral. Muitas vezes, durante a administração de Bill Clinton (1993-2001), os americanos resolveram suspender as operações visando dar provas de boa vontade aos norte-coreanos. Assim, Washington sinalizava seu interesse em negociações, que algumas vezes chegaram a evoluir para um diálogo concreto.
Os termos colocados para o diálogo EUA-República Popular da Coreia (Coreia do Norte) eram centrados em garantias de segurança para ambos os lados. Washington exigia o desmantelamento do programa de mísseis balísticos de Pyongyang (ainda não havia evidências concretas de um programa nuclear para fins militares) e os norte-coreanos exigem uma declaração de não ataque (na prática um reconhecimento “de jure” da existência da Coreia do Norte) e o fornecimento de alimentos e de petróleo.
Durante algum tempo o sistema funcionou, chegando a desembocar nas chamadas “Conversações 4+2” (ou seja, EUA, China Popular, Japão e Federação Russa e as duas Coreias). As conversações, em Beijing, iniciaram em 2003, com avanços mitigados e vários e frequentes reversões de expectativas. Mesmo a Coréia do Sul, com o Japão, lançaram pontes em direção a Pyongyang, originando a chamada “Sunshine Policy” – uma espécie de “déténte” na região.
Após vários movimentos de “stop-and-go”, as partes envolvidos chegam a um pré-acordo em 2005 (troca de desarmamento por alimentos), que, contudo não foi implementado, com Washington (Administração Bush, de 2001-2009) e Pyongyang acusando-se mutuamente de violação das decisões tomadas em Beijing. Em 2009 os norte-coreanos se retiram das conversações e abandonam os termos do pré-acordo.
Os Estados Unidos declaram boicote sobre várias instituições financeiras e sobre o comércio internacional norte-coreano. Estes, por sua vez, revelam a cientistas americanos um vasto programa de enriquecimento de urânio declaradamente voltado para a construção de artefatos nucleares. Os EUA, acompanhados pelo Japão e Austrália, apresentaram várias propostas de sanções internacionais contra o Estado norte-coreano, que são adotadas pela ONU, aumentando a situação de penúria do país.
O Programa Nuclear da Coréia do Norte
Entre 2010 e 2012, Pyongyang faz grandes avanços no desenvolvimento da balística, inclusive a balística orbital, e em testes com arma nucleares. Neste período afundou uma corveta sul-coreana – A PCC 772 “Cheonon”, em 26/03/2010 –, que teria, segundo suas alegações, espionado instalações militares em águas territoriais norte-coreanos, bem como uma avião espião norte-americano e, por fim, trava um duelo de artilharia com o sul-coreanos na altura da Zona Desmilitarizada entre os dois Estados.
Podemos dividir o Programa Nuclear Norte-Coreano nos seguintes desenvolvimentos: Fase I, entre 1956 e 1980, quando Pyongyang recebeu ajuda técnica da ex-URSS para desenvolver, para fins pacíficos, suas capacidades[2]. No entanto, em meio a este período, entre 1973 e 1975, a Coreia do Sul – em choque pela retirada norte-americana do Vietnã e temendo ter o mesmo destino, abandonada pelos seu aliado diante de uma ofensiva comunista – assina um acorde de transferência de tecnologia nuclear com a França, causando forte impacto em Pyongyang (que acelera então seu próprio programa) e, ainda, nos EUA, que exigem a extinção do Acordo Paris-Seul.
Numa Fase II, entre 1980 e 1994, a Coreia do Norte – desta vez ela mesma em pânico pela desaparição da URSS ( que entrara em colapso em 1991 ) e temerosa de um movimento compensatório americano visando unificar a Península em favor de Seul ( e sem a ajuda econômica russa, que sustentava boa parte das necessidades de energia de Pyongyang ), busca a autonomia nuclear através da “Abdul Qader Khan Network” – a famosa rede de proliferação clandestina de tecnologias nuclear promovida pelo cientista paquistanês do mesmo nome, formado na Europa, sendo responsável pela transferência de tecnologias de alto risco para a Líbia, Irã e a Coreia do Norte.
Nesse momento, logo após o fim da URSS, a Coreia do Norte temia tanto a expectativa de um ataque do Seul+EUA, como ainda “cair” numa total dependência da China Popular, uma ex-potência dominante na antiga Coreia. Assim, a arma atômica era considerada como uma garantia dissuasória básica para a sobrevivência do Estado norte-coreano.
Devemos destacar que durante toda a Guerra Fria (1947-1991) os Estados Unidos possuíam, além de grande número de tropas e equipamento sofisticado, um número próximo de 950 ogivas nucleares na Península Coreana ( maior concentração em 1967). A desaparição da URSS causou impacto e pânico na elite dirigente norte-coreana, que sem a garantia soviética, temia o poder americano, sem contrapesos, na Península. Na verdade, os EUA retiraram seu armamento nuclear em 1991, embora a frota americana, com poder nuclear, fosse mantida sempre próxima, bem como a imensa base de Okinawa.
Neste mesmo período, através de suporte técnico russo – cientistas saídos do desastre do fim da URSS – e, principalmente através de engenharia reversa, os norte-coreanos avançam de protótipos de mísseis Scud soviéticos para novas gerações de engenhos balísticos. Mas, em virtude das negociações começadas na Administração Clinton, dá-se o que foi denominado de Fase III, com uma temporária paralisação dos testes nucleares e balísticos de Pyongyang.
No entanto, a partir de 2002 – começo da atual Fase IV –, são retomadas os pesquisas e dão-se avanços concretos. Neste mesmo ano a Administração Bush havia declarado a Coreia do Norte como parte do “Eixo do Mal”, promovendo uma política fortemente agressiva de desestabilização de regimes, como no Afeganistão e, depois, no Iraque. A Invasão do Iraque, em especial, reitera a percepção de risco dos norte-coreanos.
Pyongyang realiza, então, seu primeiro teste nuclear em 2006, seguido de uma nova explosão (subterrânea) em 2009. As represálias das Nações Unidas, lideradas pelos EUA, acabam com as poucas chances de negociações, radicalizando ainda mais as posições norte-coreanas. Os testes nucleares de 2006 e 2009 ocorrem concomitantemente, com claro nexo, com os testes balísticos norte-coreanos de longa distância, um deles sobrevoando o território japonês. Para os observadores internacionais ficava evidente a relação entre a construção dos engenhos nucleares e a criação de vetores (transportes) eficazes de lançamento e posicionamento.
A transparência e acesso às informações é absolutamente limitado na Coreia do Norte – em especial depois que vários “homens de negócios” da China Popular sofreram inexplicáveis acidentes em Pyongyang entre 2006 e 2007. Assim, análises mais realistas dos resultados dos avanços norte-coreanos são precárias. Contudo, a estratégia militar norte-coreana – altamente dependente do pensamento estratégico soviético do tempo da Guerra Fria – engloba a capacidade nuclear em seus dois aspectos básicos. De um lado, a natureza “ofensiva” natural de armas atômicas e, de outro, um percepção dissuasiva do poder nuclear.
Neste sentido, as declarações de Kim Jon-un, “o grande líder”, são bastante esclarecedoras. Numa alocução no último mês de fevereiro (2013), ao explicar o papel da arma nuclear, Kim moraliza a “tragédia” dos países que abandonaram programas nucleares, como o Iraque e a Líbia. Para o dirigente norte-coreano, os dois líderes ao renunciarem aos seus programas nucleares, abriram caminho para a intervenção dos “imperialistas ocidentais”.
No ano de 2012, e logo no início de 2013, em resposta aos desafios de Pyongyang, a Administração Obama retomou as manobras militares na Península. No momento desenvolve-se a Operação “Foal Eagle”, com 40 mil homens, e para abril de 2013 já estão prevista a Operação “Key Resolve”. Aparentemente a Coreia do Norte acredita que tais operações envolvem risco real de ataque.
As próprias agências norte-americanas – CIA, Departamento de Energia, Agência Nacional de Segurança – não estão de acordo sobre as dimensões e natureza do poder nuclear norte-coreano. O que parece certo, no entanto, é a existência de duas modalidades de artefatos. Estes seriam de, no mínimo, quatro, a, no máximo, oito engenhos de urânio enriquecido e de, no mínimo, sete a, o máximo, oito engenhos de plutônio. Tais armas seriam produto de atividades em cerca de vinte duas plantas distribuídas em pelo menos dezoito localidades diferentes, espalhadas pelo país. Haveria, ainda, material selado, pela AIEA de Viena, capaz de servir para a fabricação rápida de outras seis ogivas de plutônio.
A capacidade balística de Pyongyang também é de difícil verificação. A partir da tecnologia “Scud” – envelhecida e precária – e com ajuda de seus próprios técnicos e contribuição russa e iraniana, os norte-coreanos desenvolveram um vasta – em modalidades – arsenal. Sua composição varia desde engenhos KN-1, de 110 km de alcance, passando por Scud-B ( reengenharia atual), de mesmo alcance, a Na-dong A e B, de até 800 km de alcance – com cerca de 300 unidas em inventário comprovado –, chegando ao Na-dong Z, de 3.861 km de alcance ( sem informações sobre as dimensões do inventário).
Porém, os mais temíveis engenhos seriam os Taep´o-dong 1 e 2, de três estágios, e com autonomia de voo de 12 mil km. Em 2012 foram feitos testes inconclusivos com os mísseis orbitais NK SL-1, NK X-2 E O NK SL-X, que teriam colocado em órbita um satélite “mudo” norte-coreano.
Um poderoso exército convencional
Mesmo que não tenhamos quaisquer certezas sobre a panóplia militar não-convencional norte-coreana, é possível que tudo isso exista. A dúvida reside na sua operacionalidade e no número de unidades existentes e disponíveis em inventário – temos, em verdade, um poderoso exército de terra.
As forças sul-coreanas, embora sofisticadas tecnologicamente, são pouco numerosas e o contingente norte-americano estabelecido na Península é de 37 mil homens, além de cerca de 50 mil existentes no Japão ( em especial em Okinawa ) e prontos para um deslocamento rápido para o teatro de operações.
Contudo, a República Popular da Coreia possui um dos mais vastos exércitos do mundo – tecnicamente a quinta força de terra do planeta. Suas FFAA – o Exército do Povo – estão divididas em cinco grandes “braços”: a Força Terrestre, Marinha, Força Aérea, Força Estratégica de Misseis ( nuclearizada ), Força de Operações Especiais e, em fim, a Guarda Vermelha de Operários e Camponeses.
Tais forças custam até 25% do PIB do estado norte-coreano – mais uma vez trabalhamos com dados contraditórios e precários! – de cerca de 40 bilhões de dólares. O efetivo real sob bandeira é de 1.106 mil homens e outros 8.200.000 homens e mulheres são mobilizáveis e possuem intensa, e doutrinaria, formação militar.
É possível que o conjunto das FFAA, a Chosen´gul, seja composta de 153 divisões completas e treinadas, 60 divisões de infantaria, com 14 mil homens; 25 divisões mecanizadas; 38 regimentos de carros de combate, com 6000 tropas; 25 brigadas das Forças especiais e 30 regimentos de artilharia ( com 8000 tropas) e 235 brigadas da Guarda Vermelha – tais dados são, é bom que se diga mais uma vez, confusos e mesmo a terminologia ( divisão, brigada, regimento ) possuem pouca correspondência com os corpos militares ocidentais.
De qualquer forma, o “pansari” norte-coreano continua sendo tocado, cada vez em tom mais belicoso e alto. Mesmo que consideremos a “fala” da liderança de Pyongyang como “retórica bélica”, sempre existe o risco de “um lapso momentâneo da razão”, como diria o Pink Floyd.
Francisco Carlos Teixeira é historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.