Ele não fraqueja ao comparar a Argentina militar ao nazismo e ao chamar o Reino Unido de hipócrita. Em 1974, Hugh Bicheno era agente do serviço secreto britânico, o MI6, e sustentava uma posição privilegiada, com acesso aos dois lados da suja moeda que culminou com a Guerra das Malvinas. Historiador pela Universidade de Cambridge e enviado a Buenos Aires, tornou-se testemunha de uma relação de mentiras e atropelos.
O almirante Jorge Anaya, um dos líderes da Junta Militar durante a guerra, havia passado anos como adido naval em Londres e, por sua experiência, considerava os oficiais britânicos “maricones” e “putas desesperadas”, relata Bicheno. Segundo ele, o Reino Unido queria empurrar navios de guerra sucateados para a Argentina e, de quebra, varrer a qualquer custo o “problema das Malvinas” para baixo do tapete – ignorando que se tratava de relações comerciais com uma ditadura que se empenhava em empreender uma Guerra Suja contra seus próprios cidadãos.
Por outro lado, afirma o ex-agente secreto, o primeiro ministro James Callaghan (1976-1979) mentiu sobre o envio de um submarino nuclear às Malvinas, como resposta à tomada argentina ainda em 1976 – ou seja, seis anos antes da guerra – das ilhas Thule do Sul, também território britânico. Callaghan disse, primeiramente, que o submarino foi enviado como alerta. Os argentinos só ficaram sabendo disso depois que a guerra já tinha terminado. “Não houve erro de inteligência”, garante Bicheno, frisando a “incredulidade” do governo britânico sobre uma ação militar argentina.
Às vezes com ironia, e sempre sem papas na língua, o ex-agente secreto defende com unhas e dentes que não houve proximidade entre a então primeira ministra Margaret Thatcher (1979-1990) e o ex-ditador chileno Augusto Pinochet (1973-1990) durante a guerra – apesar do claro auxílio do governo chileno às tropas britânicas e das tentativas da Dama de Ferro de barrar a extradição do general, duas décadas depois. “Havia um acordo militar ‘secreto’ entre Argentina, Peru e Bolívia para atacar o Chile e todo mundo sabia”, argumenta Bicheno, classificando como “imbecis morais” os que criticam Thatcher por ter recebido apoio da ditadura chilena.
Na contramão ou não, o ex-agente secreto, nascido em Cuba, hoje vive em Cambridge. Escreveu diversos livros, entre eles Razor’s Edge – The Unofficial History of the Falklands War (2006, 6,81 libras, Amazon.co.uk), que recebeu críticas bastante positivas quanto aos bastidores políticos do conflito.
Bicheno só aceitou responder perguntas por e-mail. Abaixo, o resultado.
Opera Mundi – Quando o senhor entrou para o MI6, o serviço secreto britânico, e por quê? Em seu site pessoal, o senhor afirma que estava desiludido com a universidade. Faltava a politização explorada em Razor’s Edge?
Hugh Bicheno – Entrei em 1973, porque eu fui convidado e achei que seria interessante. Desisti da academia porque ela estava sendo dominada por cabeças de segunda classe. Eu tinha um QI de 145 (duvido bastante que ainda tenha) e também queria uma carreira em que minha natureza de lobo solitário fosse uma vantagem.
OM – O senhor trabalhou na embaixada britânica em Buenos Aires entre 1974 e 1978. Por que escolheu ir para a Argentina?
HB – Você vai para onde te mandarem. Eu falava espanhol desde pequeno e foi um encaixe natural.
OM – Em 1975, o almirante Jorge Anaya foi adido da marinha argentina em Londres. Logo depois disso, a Argentina instalou uma base militar na ilha Thule, o que levou o primeiro ministro James Callaghan a enviar um submarino nuclear às escondidas. Apesar disso, o senhor afirma que não houve erro da inteligência britânica antes da guerra. O que aconteceu?
HB – O submarino de Callaghan foi um jeito cínico de encobrir tudo o que poderia dar errado. Ele mentiu ao dizer que a Argentina sabia do submarino. O Foreign Office (Ministério de Relações Exteriores britânico) estava totalmente informado sobre as possíveis consequências de manter uma política de apaziguamento, mas continuou com ela e se recusou a circular relatórios de inteligência que iam na contramão da versão que era passada aos ministros. Foi por isso que retiraram do Foreign Office seu poder de coletar e verificar informações e de controlar a inteligência depois da guerra.
Houve uma certa incredulidade como a base do “erro de inteligência”. Isso se chama “espelhamento”, ou seja, a crença de que outros vão agir do jeito que você agiria em certas circunstâncias. Apesar de eu estar bem mais em sintonia com a mentalidade argentina do que a maioria, mesmo assim eu não consegui antecipar que os argentinos seriam tão estúpidos a ponto de tomar as ilhas e ficar lá. A cartada deles sempre foi invadir, expulsar o governador e a guarnição, hastear a bandeira e ir para casa. Eu não tenho a menor dúvida de que, se isso acontecesse, ministros do Foreign Office teriam entrado em pânico e entregariam os moradores das ilhas, o que é exatamente o que eles tentaram fazer durante 17 anos.
OM – O senhor escreveu que o almirante Jorge Anaya se referia aos britânicos como “maricones” e “putas desesperadas”, e que ele não esperava que o Reino Unido reagisse militarmente. Por que Anaya acreditava nisso?
HB – Porque ele entrou em contato com oficiais do Foreign Office e do Ministério da Defesa que estavam tão desesperados para vender navios de guerra que disseram ao Anaya que tudo o que aconteceria se as ilhas fossem invadidas seria um apelo à ONU (Organização das Nações Unidas). Foi por isso que ele os chamou de “maricones” – ele ficou com nojo ao saber que os oficiais estavam determinados a vender seus compatriotas.
OM – Como o senhor descreveria o papel da BBC durante a guerra? O senhor cita que eles “apresentaram de maneira equivocada o sentimento do país”.
HB – A BBC é uma organização corrupta que só serve a si própria, e sua única preocupação é conseguir amealhar impostos para manter a “nomenclatura” e encher os bolsos. Ela é, portanto, sempre hostil a qualquer governo Conservador que assuma o poder depois de um longo período de governo Trabalhista, porque eles têm de cortar gastos. A BBC transmitiu informações militares que seriam de grande ajuda para os argentinos se eles tivessem acreditado que uma empresa chamada British Broadcasting Corporation fosse capaz de tal traição. A BBC também retratou britânicos e argentinos como se tivessem uma moral equivalente e deu credenciais a uma propaganda argentina reconhecidamente falsa, porque eles queriam que os britânicos perdessem e que isso derrubasse Thatcher, de quem eles tinham medo.
OM – A guerra foi uma “jogada arriscada” principalmente porque os britânicos não tinham superioridade aérea? Ou há outros ingredientes que precisam ser levados em consideração?
HB – Como você chamaria mandar um número inferior de tropas a oito mil milhas de distância para conduzir um desembarque anfíbio em ilhas que ficam a 300 milhas do território inimigo sem superioridade aérea?
OM – Como a Junta Militar recebeu a informação de que o Ministério de Defesa britânico ia aposentar o Endurance, um de seus principais navios? O corte do orçamento de 1982 para a defesa foi crucial para o início da guerra?
HB – Não. Se esse fosse o caso, os argentinos teriam esperado mais um ano, quando não só o Endurance, mas outros porta-aviões e os equipamentos anfíbios teriam sido cortados.
OM – Thatcher tinha outros meios políticos para resolver o conflito? Por que ela não os usou?
HB – A única outra “solução” seria deixar os argentinos em posse da ilha. Se tivesse feito isso, ela teria sido destruída por seus inimigos no governo britânico e pelo seu próprio partido.
OM – Qual a importância dos laços entre Thatcher e Pinochet durante a guerra? E como eles foram recebidos pela opinião pública britânica?
HB – Thatcher não tinha laços com Pinochet durante a guerra. As forças armadas chilenas deram ajuda voluntária porque se a Argentina tivesse sucesso nas Malvinas, o Chile seria o próximo. Havia um acordo militar “secreto” entre Argentina, Peru e Bolívia para atacar o Chile e todo mundo sabia. Thatcher demonstrou uma incomum integridade ao agradecer Pinochet pela ajuda que ele ofereceu. Aqueles que dizem que isso mostrou uma indiferença em relação aos direitos humanos são os mesmos que afirmam que ela estava errada em entrar em guerra contra um regime que torturava e matava muito mais gente do que ele. A vitória britânica derrubou uma ditadura militar argentina que buscava o genocídio e, em efeito dominó, derrubou outra na Bolívia que tinha apoio da Junta argentina. Só um imbecil moral argumentaria no fato de que a vitória veio com a ajuda de uma ditadura menos militarizada como a do Chile.
OM – A guerra acabou com a possibilidade de se rediscutir a soberania da ilha? É possível predizer o resultado dessa nova escalada de tensões entre Cristina Kirchner e David Cameron?
HB – Enquanto os moradores da ilha não desejarem ser governados por Buenos Aires (e qual pessoa em sã consciência o faria?), o governo britânico tem obrigação legal e moral de respeitar seus desejos. Os peronistas vão continuar latindo, porque além de roubar isso, é o que eles mais sabem fazer, mas eu duvido que eles dêem às Forças Armadas a oportunidade de recuperar prestígio.
OM – A guerra deixou alguma lição? Quem deveria ter aprendido o quê?
HB – Se eles (os argentinos) invadirem de novo, provavelmente vão ter sucesso, porque aprenderam com seus erros enquanto os britânicos, como sempre, se recusaram totalmente a aprender com os seus.
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