Lembrando os anos 1930

Marcha dos desempregados, Londres, 1930

LUIZ SÉRGIO HENRIQUES

No fim de um ano dramático, que fez desfilar diante de nós os penosos desdobramentos da crise iniciada com as hipotecas podres americanas e, agora, atinge em cheio o projeto de unificação europeia, seria irresistível a tentação do pessimismo e até a adoção de tons apocalípticos, não fosse a lição do poeta, mineiro e universal, a nos advertir que o último dia do ano não é o último dia do tempo, muito menos o último dia de tudo.

Feita a ressalva poética, cuja ironia nos autoriza a manter, apesar dos pesares, o otimismo da vontade, cabe admitir em sua abrangência os efeitos de uma situação que começa a extravasar poderosamente da economia para a política, suscitando opiniões que aludem, por analogia, a um dos períodos mais críticos do século 20. De fato, o que agora crescentemente se toma como referência é o período que testemunhou a longa guerra civil europeia, iniciada em 1914 e concluída com o conflito generalizado entre 1939 e 1945. No meio de tudo isso, a Grande Depressão dos anos 1930.

Então, como agora, havia um diagnóstico generalizado em diversas áreas políticas e vocalizado de modo semelhante por intelectuais do amplo espectro democrático, com exceção, naturalmente, dos adeptos das soluções corporativas e nacionalistas representadas pelo fascismo e pelo nazismo. O diagnóstico considerava que o século 20, além de assistir à emergência irresistível das massas, padecia de uma contradição insanável: por um lado, os laços econômicos internacionalizavam-se e tornavam os diferentes sistemas nacionais cada vez mais dependentes uns dos outros; por outro, a incapacidade de governar politicamente tal internacionalização fazia nações-chave se fecharem nas próprias fronteiras, estimulando um nacionalismo agressivo ou, no caso do nazismo, abertamente belicoso.

O contexto crítico dos nossos dias, com a depressão econômica que se aprofunda, parece suportar a analogia. Pode-se hoje falar, sem metáfora de nenhum tipo, de uma economia-mundo, ou seja, de um sistema econômico mundial, formado, no entanto, a partir de forças de mercado livres de qualquer regulação democrática. O esvaziamento da política ou a sua irrelevância como expressão da soberania popular assumem por vezes níveis inéditos. Para dar um exemplo dessa irrelevância, veja-se a Bélgica, um país que, de resto, é a “capital” da Europa unificada. Pois esse país emblemático, das eleições parlamentares de meados de 2010 até há poucas semanas, esteve sem governo formalmente constituído, como se isso fosse rigorosamente dispensável.

Deixemos de lado a especificidade belga, constituída pela fratura interna entre flamengos e francófonos, que não é o caso de analisar aqui. O exemplo só nos interessa como sintoma de que, uma vez mais, os fatos da economia parecem um “processo histórico natural”, não governado ou pobremente governado por instâncias políticas incapazes de propiciar segurança social e garantir aos cidadãos, seja no plano nacional, seja no das instituições supranacionais, um mínimo de participação e sentido de pertencimento.

A mais recente voz a fazer soar o alarme foi Paul Krugman, ao sublinhar a precária situação da democracia em outro pequeno, mas representativo, país da mítica Mitteleurope. Na Hungria, diz-nos Krugman, o partido Jobbik comporta-se segundo o ritual e os “valores” do nazismo, a começar pelo antissemitismo e o patrocínio de um “braço armado”. E o partido de governo Fidesz, amplamente majoritário, desenvolve políticas de ocupação permanente do poder – anulando a diferença entre partido e Estado -, partidariza e “aparelha” o Judiciário, além de promover a inviabilização da alternância e estatizar a mídia, tornando-a veículo de propaganda dos donos eventuais do poder. Um quadro no qual, segundo Krugman, embora não haja um Hitler à vista, a possibilidade de colapso do euro seria um problema relativamente menor para as elites políticas europeias e o projeto de unificação.

Nos anos 1930, como se sabe, havia uma esquerda comunista à frente de um Estado poderoso que, num percurso acidentado de todos os envolvidos, terminaria, felizmente, por se associar às democracias ocidentais para derrotar o desafio nazi-fascista à civilização. Ainda no Ocidente, especialmente na França e Espanha, comunistas e socialistas puderam se encontrar em trincheiras comuns, ao lado de democratas “burgueses”, como então se dizia, a partir das políticas de “frente popular”. (E até no Brasil, em contexto diverso, a experiência da ANL, em 1935, sem contar o desastrado desfecho violento, merece figurar como sinal de aglutinação das massas urbanas e tentativa de ampliar a democracia.)

Tudo isso é verdade e deve ainda inspirar aqueles que, à esquerda, se preocupam hoje com o destino de seus próprios países e, ao mesmo tempo, mantêm como horizonte uma sociedade mundial cosmopolita, culturalmente articulada e socialmente mais justa.

É verdade, mas não toda a verdade. O comunismo histórico, portador de reivindicações de mudança substantiva comandada por uma “classe universal”, nascera de uma ruptura com a democracia política, cujo sistema de garantias deveria ser suspenso na hipótese de uma tomada revolucionária de poder e construção da nova sociedade sem classes. Aí, como ficaria sempre mais claro, o seu “pecado oriental”, de que derivariam sociedades fechadas, as quais seriam repudiadas pelas respectivas populações nos acontecimentos sintetizados simbolicamente na derrubada do Muro de Berlim.

Para evitar esse resultado catastrófico e, também, atuar produtivamente na crise atual uma estratégia sensata deveria levar as esquerdas a dialogar com a tradição liberal, reformando-se para incorporar, entre outras, a dimensão do pluralismo.

LUIZ SÉRGIO HENRIQUES, TRADUTOR, ENSAÍSTA, É UM , DOS ORGANIZADORES DAS OBRAS DE GRAMSCI NO BRASIL, SITE: WWW.GRAMSCI.ORG

Fonte: Estadão

3 Comentários

  1. Belíssimo texto Luiz Sérgio…. conseguiu ver muito mais além do que muitos nesse país… que mais pessoas leiam esse texto.
    .
    Só deixou de lado a arrogancia e a vaidade de ambas as partes. Sentimentos que fazem parte de todo ser humano(animal descendente do macaco) em sua origem. Se nem dois países de alinhamento diferentes(coreia do norte/sul por ex.) conseguem se entender e buscar uma forma de desenvolver uma nova idéia comum de sociedade-economia voltada para o bem de sua população, qum dirá uma mudança a nível global

  2. Uma vez estalinista, estalinista ate morrer. Como avestruz, diante do perigo mete a cabeca na areia e expoe o traseiro para o perigo. Essa proposta, esquerda dialogando com a tradicao liberal, e a velha politica formulada por Stalin, Frente Popular, teoria de dois estagios da revolucao, democratica agora, socialista/comunista para o dia que porco voar, levou ao mundo que vivemos hoje. O prolongamento de um sistema capitalista decadente apos a destruicao catatastrofica segunda guerra mundial so foi possivel graca a politica estalinista deliberada de prevenir revolucao na Europa, em particular Franca, Grecia e Italia. O texto diz que os comunistas estiveram na mesma trincheiras com os defensores do capitalismo, contra o nazismo, eu diria, os estalinistas estiveram na mesma trincheira, lutado ao lados da suas respectivas burguesias e quando apos o fim da guerra fizeram parte dos governos na Franca e na Italia, colaboraram com as forcas capitalistas para desarmarem as classes proletarias que estavam em processo de radicalizacao. Verdadeiros comunistas combateram as duas faccoes do capitalismo em guerra. Por isso foram massacrasdos tantos pelos nazis como pelas tropas aliadas. Entre os teoricos marxistas italianos, que fundaram o PCI nao en nos escritos de Gramsci que um membro da classe operaria vai adquirir metodos para analizar e atuar na realidade politica do memento, mas em Amadeu Bordiga. Nunca pertenci as correntes politicas descendente dos grupos politicos de Amadeu Bordiga, mas julgo ele menos corrosivo do que Gramsci. Este talvez seja util para algum estudante universitario procurando material para escrever teses, mas como teorico capaz de fornecer uma metodologia,para atividade revolucionaria do proletariado, nao tem nada a oferecer. Sendo um pouco condecendente, diria talvez seus escritos antes da prisao, podem ser considerado uteis.

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