A ordem tecnodemocrática

Gaudêncio Torquato

As quedas sucessivas de governos europeus – Islândia, Dinamarca, Grã-Bretanha, Grécia, Holanda, Irlanda, Eslováquia, Portugal, Itália e Espanha – abrem intensa polêmica sobre o fenômeno da regionalização, sinalizam a ascensão da tecnocracia ao centro do poder político e contribuem para mobilizar massas, até então amorfas, em países credores e devedores. Abrigados nas margens do espectro ideológico, grupos de todos os matizes passam a agir como exércitos destemidos, tomando as ruas, exigindo a saída de governantes açoitados pela crise financeira e a entrada na cena política de figurantes e de propostas inovadoras. O status quo é jogado no colo de “elites” identificadas com mandatários responsáveis pela adoção de modelos ultrapassados.

Espraia-se na Europa uma agitação que clama por mudanças drásticas, tendência que se enxerga na ação de partidos de extrema direita na Itália, França, Holanda, Áustria e Finlândia, e de setores populistas que pretendem sacudir o continente e inserir na agenda amplo debate sobre os parâmetros que regulam a União Europeia (UE). A par de explícitos interesses de grupos radicais, que esquentam a polêmica e partem para o embate, o que está em jogo neste momento, também nos EUA e em outras praças, é o próprio equilíbrio do sistema democrático, a ensejar a instigante questão: a crise financeira ameaça os valores da democracia?

Partamos da análise dos efeitos da regionalização na vida dos países. A crítica mais comum é quanto à sensível perda das identidades nacionais. E as nações passaram a ter governos manietados, ou, para usar termo mais leve, controlados pelo mandatário-mor do planeta, o capital internacional. Parcelas expressivas das populações europeias se queixam de que a erosão de suas fronteiras, a eliminação das moedas nacionais e a imposição de uma nova ordem pela troica UE-Banco Central Europeu-FMI interferem no seu modo de ser, pensar e agir. Não se conformam com o enxerto em suas culturas de sementes estranhas ao solo pátrio e apontam para o esgarçamento da teia de valores que formam o caráter de seus povos. A expressão das comunidades, agora mais acesa, resgata a tese de que as economias continentais diferem bastante para ficarem sob as rédeas de uma única política monetária. As assimetrias, como agora se mostram, eram previsíveis. O discurso é consistente.

O ordenamento do império financeiro – inspirado na proteção dos cofres e no fortalecimento dos PIBs nacionais – acaba tapando os olhos para o conforto social, ainda que as equações produzidas pelos formuladores de plantão tentem demonstrar relação de causa e efeito, ou seja, a estratégia de defender o bem da nação seria chave para abrir as portas do bem-estar geral. Não faltarão questionamentos à abordagem, basta lembrar a receita brasileira: para enfrentar a crise prescreveu o acesso da população ao crédito e consumo. Explicações à parte, o fato é que as democracias veem suas engrenagens navegarem nas ondas do império financeiro global, entidade que enquadra as esferas políticas e governamentais, centrais e periféricas, de potências ou territórios de pouca expressão. Não há como deixar de constatar a existência de parâmetros similares em todos os sistemas democráticos e a corrosão de cores nas bandeiras nacionais.

Dito isto, analisemos agora o segundo ator importante no quadro das democracias contemporâneas: o tecnocrata. De início, é oportuno lembrar que não há mais no planeta brilhantes estrelas da política. O painel político da humanidade locupleta-se de figurantes sem o glamour de líderes que marcaram presença na História. Os tempos são outros. Queixumes se ouvem nas praças do mundo: quem lembra a sabedoria e o tino de figuras portentosas como De Gaulle, Churchill e mesmo Margaret Thatcher ou Willy Brandt? As nações dispõem hoje de quadros funcionais de limitado ciclo de vida política. Os conflitos do passado, cujo foco era a geopolítica e a expansão de domínios, cedem lugar às lutas internas contra o dragão que devasta as finanças e corrói os Tesouros. É natural, pois, que o perfil do momento seja o treinado nos salões da tecnocracia. Aliás, o termo vem a calhar nestes tempos de insegurança, eis que agrega habilidade (tekné) ao poder (krátos). Isso é o que se espera dos “solucionadores de problemas”, entre eles, Mario Monti, novo primeiro-ministro italiano, que herda o caos deixado por Berlusconi, e Lucas Papademos, que domina a planilha de contas, mas parece perdido diante dos cofres vazios da Grécia. Exímios tecnocratas, deverão pôr em prática as ordens de quem realmente dá o tom da Europa – Alemanha e França, cujos mandatários, Angela Merkel e Nicolas Sarkozy, são jocosamente chamados de Merkozy.

Afinal, o tecnocrata faz mal à democracia? A pergunta está no ar desde a queda do Muro de Berlim, no vácuo deixado pelo desvanecimento das ideologias e pela pasteurização partidária. De lá para cá, governos esvaziaram seus compartimentos doutrinários, preenchendo-os com quadros burocráticos e apetrechos técnicos para obter eficiência e eficácia. Inaugurava-se o ciclo que Maurice Duverger cognomina de “tecnodemocracia”, que sucede à democracia liberal. Seus eixos se apoiam em organizações complexas e racionais e, hoje mais que nunca, levam em conta a gangorra dos capitais financeiros mundiais. A política deixou de ser uma unidade autônoma, porquanto passou a depender de mais duas hierarquias: a alta administração do Estado e os negócios. Esse é o feitio dos modernos sistemas democráticos. E é essa modelagem que explica manifestações radicais das massas em quadrantes diferentes do planeta. Busca-se um salvador da pátria, seja ele socialista, populista, liberal, conservador de direita, tecnocrata ou intelectual. Se ele não aparecer, um ditado conhecido dos ditadores poderá emergir: quando nada mais se apresenta, o trunfo é paus.

JORNALISTA, PROFESSOR, TITULAR DA USP, É CONSULTOR POLÍTICO DE COMUNICAÇÃO
TWITTER: @GAUDTORQUATO

Fonte: Estadão

9 Comentários

  1. Apareceu um novo profeta.
    Ora bolas, blá, blá, blá.
    Estabelece novos dogmas (conflitantes entre si), a partir de algo que ainda não se identificou o que é direito.
    Fui.

  2. Tudo isto é vero o povo esta perdendo sua identidade seus valores familiares,a ordem é produzir produzir,e neste produzir quem tem mais mais tem e quem tem menos menos tem é o preparo da nova ordem mundial,muitos me chamarão de doido lunatico,mas é a preparação de um governo unico,o mundo sera dividido em 10 supernações e isto esta acontecendo nos nossos olhos, o caos o gemido das nações guerras e mais guerras conflitos como nunca ouve,esta acontecendo.

  3. Pois é… vou mais longe… eu acho que toda pessoa para se candidatar a qualquer cargo público, desde vereador a presidente, tem de ter no mínimo um curso superior na área de humanas… especificamente cursos como administração, direito, economia, ciencias contabeis e etc…
    Chega de tiriricas, de doutores sempre simpaticos e que parecem ser inteligentes, chega de playboy filho de político ou de militar… ta na hora de colocar gestores que tenham comprovadamente capacidade para gerir, legislar e administrar o que é do povo… afinal, estamos pagando. devemos exigir qualidade no serviço que esses sangessugas nos prestam.

  4. É meio anti-democratico pensar que alguém como o lula que nao teve educação superior ficaria impossibilidato de se eleger.. mas a realidade antes era outra, hoje em dia todos tem acesso á educação superior, basta querer… ir atrás… nao esperar abrir uma universidade na porta de casa pra resolver estudar..

  5. “Afinal, o tecnocrata faz mal à democracia?”
    ———-
    Lógico que não, o que faz mal, muito mal, é a concentração de renda, diferença abismal de ricos e pobres, má distribuição da renda, fome, desemprego, doenças por descaso a saúde, crime organizado, corrupção política, e finalmente e ligado a tudo:
    A FALTA DE ESPERANÇA.
    Arruma esses ítens acima e é só paz.

  6. Afinal, o tecnocrata faz mal à democracia? A pergunta está no ar desde a queda do Muro de Berlim, no vácuo deixado pelo desvanecimento das ideologias e pela pasteurização partidária. De lá para cá, governos esvaziaram seus compartimentos doutrinários, preenchendo-os com quadros burocráticos e apetrechos técnicos para obter eficiência e eficácia. Inaugurava-se o ciclo que Maurice Duverger cognomina de “tecnodemocracia”, que sucede à democracia liberal. Seus eixos se apoiam em organizações complexas e racionais e, hoje mais que nunca, levam em conta a gangorra dos capitais financeiros mundiais. A política deixou de ser uma unidade autônoma, porquanto passou a depender de mais duas hierarquias: a alta administração do Estado e os negócios. Esse é o feitio dos modernos sistemas democráticos. E é essa modelagem que explica manifestações radicais das massas em quadrantes diferentes do planeta. Busca-se um salvador da pátria, seja ele socialista, populista, liberal, conservador de direita, tecnocrata ou intelectual. Se ele não aparecer, um ditado conhecido dos ditadores poderá emergir: quando nada mais se apresenta, o trunfo é paus.

    RESUMO: O GENERAL HELENO DISSE; E SE AINDA EXISTISSE A UNIÃO SOVIÉTICA SERÁ QUE A OTAN E EUA ESTARIAM NA LIBIA, AFEGANISTÃO E IRAQUE?

    O MUNDO ESTA SOBRE UMA BALANÇA ONDE OS PESOS ESTÃO TODOS DE UM LADO.pelo que sei os impérios modernos não duram muitos anos…
    APROVEITA BRASIL!!!

  7. Pois é…
    De ´diplomados´ nós tivemos muitos…
    Um deles, doutorado em ciências humanas, nos enfiou goela abaixo o TNP e o MTCR…além de nós quebrar por três vezes, acabar com nossas industrias de defesa, e muito mais…
    Técnicos são apenas isso, técnicos…é preciso saber quais são as idéias das ´técnicas´ a serem aplicadas na gestão de um país, e isso não é uma questão técnica, e sim uma decisão politico-ideológica. Ou seja, é preciso antes decidir, democraticamente, quais serão as balizas das decisões técnicas…
    Por exemplo ? Quais são as idéias mais amplas que norteiam a escolha de material e parcerias na área de defesa ? Depois de decidido isso, que envolve muita coisa não técnica, é que se aplicam as decisões ‘técnicas’.
    E depois, se os elegíveis devem se selecionados por ´diplomas’ por que os eleitores não deveriam ser escolhidos pelo mesmo critério? Ou melhor ainda, apenas os que têm título de doutorado (afinal, são mais ´conhecedores´…), além de terem de apresentar um renda superior, digamos, a 1 milhão por ano, já que como ‘ bem sucedidos’ devem saber melhor o que é bom para você…? Ou então que morem apenas nas regiões ‘ mais desenvolvidas’ …ou que não sejam mestiços, que tenham apenas religiões ‘ aceitáveis’, etc…
    Como se pode ver, por absurdo, fixação de critérios acaba em fixação de privilégios e castas…

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