Adeus à ideologia

DENIS LERRER ROSENFIELD

Enquanto, para muitos, o marxismo vigia como a grande doutrina do século 20, os que compartilhavam essa visão estavam relativamente tranquilos por fazerem parte de um mundo acomodado, onde todas as peças se encaixavam. Não importava que a realidade fosse totalmente diferente. Nesse mundo teoricamente acomodado, a luta de classes estruturava tudo, ancorada que estava numa classe, o proletariado, que teria a missão de resgatar a humanidade da opressão capitalista.

Com a derrocada do comunismo/socialismo, os que continuaram, apesar de tudo, seguindo a doutrina marxista partiram para a busca de novos agentes históricos, criando um arremedo de luta de classes, agora focado em minorias. Não valia mais a oposição entre burgueses e proletários, mas entre “ricos” e “pobres”, as “elites” e os “trabalhadores”, e assim por diante.

A agenda das minorias foi sendo assumida pela esquerda, embora historicamente não lhe fosse uma pauta própria. A questão indígena foi um exemplo dessa apropriação, tornando-se as tribos símbolos de resistência ao capitalismo, que teria destruído a sua situação originária, identificada a uma espécie de comunismo primitivo.

Os indígenas reais, com seus problemas urgentes de integração a uma sociedade não indígena, que os atrai e não os trata como iguais, foram sendo progressivamente abandonados. Em vez do equacionamento de uma questão social, com saúde, educação e moradias de qualidade, outra agenda entrou em pauta, a da luta contra o capitalismo, contra os produtores rurais, contra o agronegócio.

Acontece que a realidade não se deixa apreender dessa maneira. Em artigo anterior apresentei o caso de Barra Velha, no sul da Bahia, posteriormente muito bem retratado no Jornal Nacional de 20 de setembro. Lá o conflito opõe pequenos e médios agricultores e assentados da reforma agrária à Funai e ao Conselho Indigenista Missionário.

A oposição entre “ricos” e “pobres” desaparece, com os assentados da reforma agrária, representados pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf), ala rural da CUT, e pelo MST, aliados aos produtores rurais, opondo-se aos representantes dos indígenas. Um diretor da Fetraf, em termos muito incisivos, falou ao Jornal Nacional. Um proprietário rural, por sua vez, chegou a exibir um título de propriedade anterior à promulgação de nossa Constituição.

Em outros lugares do País a situação se repete. No norte do Rio Grande do Sul, nos municípios de Marau, Gentil, Mato Castelhano e Ciríaco, agricultores familiares e pequenos agricultores estão ameaçados por atos administrativos da Funai, via constituição de grupos temáticos e de identificação e demarcação. Num primeiro momento, alguns representantes da Funai procuram tranquilizar esses produtores rurais e os prefeitos, dizendo que os grupos são apenas temáticos e os processos de identificação não foram concluídos. Pura enganação, pois, uma vez a máquina posta em movimento, o resultado é um só: a identificação e demarcação dessas terras. Os antropólogos a serviço dessa “causa ideológica” têm um só código de “ética”: dar sempre razão às “minorias”. A ciência foi abandonada.

O rosto de agricultores familiares e pequenos agricultores expressa medo. A apreensão é total. Possuem títulos de propriedade em muito anteriores a 1988 e, no entanto, estão reféns da insegurança jurídica. Trabalhos de décadas estão em perigo. As famílias desconhecem seu destino.

O sul de Mato Grosso do Sul, em torno de 20% do Estado, vive hoje a mais completa insegurança jurídica, com portarias da Funai que estabelecem estudos preparatórios de identificação e demarcação. Produtores rurais são vítimas de uma política que os tem como inimigos, usurpadores, quando seus títulos são também em muito anteriores à Constituição de 1988. Lá há também problemas graves de ampliação de terras indígenas. O conflito é generalizado.

Dentre as diretrizes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento do caso da Raposa-Serra do Sol, duas merecem ser destacadas: a que estabelece o fato temporal indígena, a saber, a ocupação efetiva, presente, de territórios pelos indígenas quando da promulgação da Constituição de 1988; e a proibição de ampliação de territórios indígenas já demarcados.

A primeira condição não acolhe a ideia de que um território indígena o seja de fato por haver nele um cemitério ou traços de ocupação que remontam, por exemplo, a 100 ou 200 anos, se tal ocupação não se prolongou efetivamente no tempo. Laudos e relatórios antropológicos dessa maneira feitos não teriam validade. A segunda veda novas identificações e demarcações a partir de um território já demarcado e homologado – na verdade, uma ampliação, pois uma demarcação anterior demarcou igualmente como terras não indígenas o seu entorno. Eventuais problemas de explosão demográfica devem ser objeto de tratamento social, podendo até mesmo se traduzir na compra de terras, pelo valor de mercado, terra nua e benfeitorias, para equacionar um problema de ordem demográfico-social.

As duas diretrizes acima mencionadas estipuladas pelo STF incluem também como condição que os territórios em disputa, tanto no fato antropológico temporal quanto na ampliação de territórios, não tenham sido objeto anterior de esbulho possessório, segundo o acórdão publicado a respeito. Eis um argumento que tem sido utilizado pela Funai e pelo Ministério Público Federal para restringir, se não invalidar a decisão do Supremo. Na verdade, seria uma forma de seguir não seguindo o acórdão do STF. Há uma questão teórica importante aqui envolvida: a condicionante de uma regra não pode ser interpretada de tal modo que invalide a própria regra da qual ela é uma condição. Isso seria equivalente a anular a própria decisão do Supremo.

DENIS LERRER ROSENFIELD – PROFESSOR DE FILOSOFIA, NA UFRGS. E-MAIL:, DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR, DENIS LERRER, ROSENFIELD – O Estado de S.Paulo

9 Comentários

  1. Excelente texto,apesar de tocar em assunto ja conhecido e surrado,estes senhores que ai estao possui a ideologia de puxar a brasa para o proprio caviar,passam vaselina em alguns destraidos e pronto ,ferrao com os brasileiros ,nao tem pra onde correr,alguns ja aprenderam a relaxar !

  2. O texto está mal colocado. Há uma discussão novamente sobre poderes da FUNAI versus direitos constitucionais de 1988 etc. Não se trata de uma discussão sobre ideologia, mas sim de comportamento funcional de um órgão do Governo.

  3. Na verdade estar historia de reserva indigina e apenas uma forma de garantir reserva para territoriais para mais adiante pedir na ONU o reconheciamento de um país dentro do brasil, estão aplicando a tatica de dividir para consquistar conosco a anos afio e ninguem se toca.

  4. É uma vergonha o Brasil ter ainda seres humanos vivendo na Idade da Pedra. Os políticos que estão fazendo isso, deveriam pagar com a Pena de Morte. Tratar seres humanos como animais pré-históricos, pra mim é um crime contra a humanidade.
    Temos quantos índios no Brasil ? Digamos que seja 400 mil, sendo que 100 mil vivam como bichos. É um absurdo ! Sugestão: Vamos doar terras para esse povo, mas individualmente, ensinar-lhes uma profissão e transformá-los em fazendeiros, agricultores, militares, médicos, engenheiros, políticos, etc.

  5. Muito bom o artigo em exposição e bastante relevantes são algumas das abordagens realizadas pelo autor, especificamente quando trata das novas táticas adotadas pelos fiéis seguidores da doutrina marxista/socialista de implantar e cultivar as suas idéias.

    Ao apadrinhar determinadas minorias, pois o esforço anteriormente era concentrado no todo e não nas partes, ao que parece, ganhou sobrevida. Mas é importante que se compreenda que os objetivos são e serão sempre os mesmos, ou seja: a eterna luta dos pobres contra os ricos.

    Eu particularmente creio que ambos os modelos estão ultrapassados nas suas concepções e issso por puro radicalismo, apenas mudaram de táticas mas as estratégias me parecem as mesmas. Prova disso está aí, outrora a queda dos países do bloco soviético liderados pela extinta e falida URSS e agora, a derrocada maciça do bloco dos capitalistas liderados pelos USA, Inglaterra, França, Itália, Alemanha, etc.

    Não sou economista, não sou capitalista, não sou marxista, só acredito que o mundo caminhará melhor, independente de ideologias, se houver menos concentração de riquezas nas mãos de poucos e maior e melhor distribuição de rendas com oportunidades igualitárias.

    Tento apoiar o meu argumento na seguinte observação de fatos históricos: se os Egipícios e Persas no meio do deserto conseguiram atingir o nível de desenvolvimento que detinham a cinco mil anos atrás, se os Mayas, os Aztecas e o incas no meio da selva atingiram o nível de evolução que até hoje , quando os estudamos ficamos sem entender as suas reais capacidades de superação, por que os índios brasileiros não são capazes de evoluir? por que os Quilombolas também não? se bem que hoje tudo seria mais fácil graças as ferramentas de suporte de que dispomos para ajudá-los e ao recursos econômicos disponíveis para tal.

    A quem interessa manter os nossos irmãos índios, Qilombolas tocando maracá, dançando a dança da chuva, fumando um pacayo, deitados numa rede e tomando cachaça sob a alegação de que é isso que eles querem para viver e progredir? e esse raciocínio vale para todos os demais grupos de excluídos, ou nós os ajudamos ou corremos o risco de ver em nosso país o que ocorreu no Egito atual, na Líbia,etc.

    Hoje decorridos mais de um século e meio da libertação dos escravos tivemos um negro sentando nas poltronas do Supremo Tribunal Federal e por que não um índio também? basta que se criem as oportunidades e todos nós sairemos fortalecidos. Exclusão só gera ódio e vingança.

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