A pesquisa espacial tem aplicações na telecomunicação, na medicina, na ecologia, na meteorologia – em tudo

O programa Voz da Rússia recebeu em seus estúdios no Rio de Janeiro o astrônomo Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, fundador do Museu de Astronomia e Ciências Afins, prolífico escritor – autor de obras que vão da ciência e tecnologia a ensaios filosóficos e à poesia –, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e articulista de vários jornais e revistas. Ele foi colaborador e consultor, durante 25 anos, das revistas Manchete e Geográfica Universal, editadas por Bloch Editores, e atualmente publica, entre outros trabalhos dedicados à ciência astronômica, o “Anuário de Astronomia”.

Entrevista ao jornalista Arnaldo Risemberg

Astrônomo Ronaldo Mourão: “A visita de Gagarin ao Brasil, em 1961, permitiu o início das relações diplomáticas com a então União Soviética”

– Voz da Rússia: Professor Ronaldo Mourão, é um grande prazer recebê-lo em nossos estúdios, para esta entrevista.

Ronaldo Mourão: É um grande prazer estar aqui e falar para um público – da rádio e do site Diário da Rússia – interessado nos fatos e na gente da Rússia, que é um país que se dedica à ciência, principalmente à astronomia e à pesquisa espacial. As primeiras grandes vitórias astronáuticas, a exploração do espaço, foram realizadas exatamente pela então União Soviética, numa época em que havia uma corrida, uma disputa espacial, e isso deu uma nova dimensão à astronomia.

– VR: Sabemos dos voos experimentais, inicialmente com animais, enviando cachorros ao espaço, e em seguida do voo pioneiro tripulado de Yuri Gagarin, a quem o senhor recepcionou aqui no Rio de Janeiro… E eu lhe peço então que conte aos ouvintes do programa Voz da Rússia e do site Diário da Rússia como foi aquela recepção em que o senhor ajudou o primeiro cosmonauta a conhecer melhor o Rio de Janeiro e o Brasil. E também a sua opinião a respeito da importância de Yuri Gagarin nesta época em que ainda comemoramos os 50 anos do seu voo tripulado.

RM: A importância de Gagarin é muito grande, porque ele foi o primeiro homem a dar uma volta completa em torno da Terra. Esperava-se com muito cuidado o que seria do homem no espaço, se ele poderia permanecer fora da gravidade ou em microgravidade. E o seu voo e a sua descida de paraquedas foram muito interessantes e importantes para a época. Ao atingir a órbita, a primeira coisa que ele disse foi que a Terra era azul. Depois do voo ele esteve no Brasil e trouxe uma carta ao Presidente Jânio Quadros, o que permitiu o início das relações diplomáticas com a União Soviética. Eu o acompanhei em várias atividades, principalmente na casa de Drault Hernani, uma grande personalidade da época, que morava na mansão da Gávea Pequena, hoje residência do prefeito do Rio. Gagarin era uma pessoa muito agradável, sempre sorrindo e falando com todo o mundo. Todas as garotas o cercavam na piscina, porque ele era uma pessoa muito brincalhona. Era um grande “embaixador” da Rússia naquela época.

– VR: Gagarin lhe fez alguma confidência sobre o período da permanência dele no espaço?

RM: Não. Ele só disse que foi muito bom. Na época ele não podia dizer se tinha havido algumas falhas durante a missão – ele não ia dizer nada que fosse contra –, mas nós sabíamos que houve falhas na hora da descida. Aquele feito foi uma grande novidade, um choque imenso, muito maior talvez do que o Sputnik. A Rússia teve avanços na corrida espacial antes dos Estados Unidos. Os americanos e outros 16 países se associaram, mas quem conseguiu a primeira estação espacial foi a União Soviética. A estação espacial Mir, nome que, traduzido do russo, significa “paz”.

– VR: O senhor diria que a história da astronomia se divide entre antes e depois de Yuri Gagarin?

RM: Pode-se dizer isso, mas acredito que o Sputnik foi um divisor ainda maior. Com ele, a astronomia tomou uma nova dimensão, um novo aspecto. As sondas que a União Soviética começou a lançar, como o Lunik, permitiram a realização de grandes descobertas e um avanço enorme não só da astronomia mas também de outras áreas, como a telecomunicação e a medicina espacial. Hoje nós conhecemos mais o universo através das sondas espaciais do que através dos telescópios.

– VR: O senhor falou ainda há pouco na Estação Espacial Internacional. No nosso entendimento, ela é uma espécie de agente, de unificador diplomático, uma vez que agrupa astronautas de vários países com os cosmonautas russos. O senhor entende que esta corrida espacial está aproximando mais os povos?

RM: Sim, ela é um propulsor dessa aproximação. Porque a colaboração entre vários países como Rússia e Estados Unidos é uma coisa muito boa. E, hoje, a Estação Espacial Internacional está dependendo das naves russas. VR: A Rússia é a única transportadora de astronautas e cosmonautas? RM: Vai ser a única, porque este ano, em junho, será realizada a última subida da nave americana até a Estação – o que eu particularmente acho uma tristeza.

– VR: Por quê? O que a ciência perde com essa desativação?

RM: Porque essa desativação coloca tudo em cheque. Há todo um problema de pesquisa espacial muito mais profundo. Agora nós temos a China, que vem forçando uma disputa maior. E isso é de uma enorme importância para a ciência astronômica e para a humanidade, porque nos dá uma visão muito maior da nossa importância e da importância da vida.

– VR: O senhor aborda aí uma questão essencial, e que muitos se perguntam. Por que investir tanto dinheiro em programas de corrida espacial se há tantos problemas prementes na Terra? Ou seja, qual o ganho da humanidade com a pesquisa espacial?

RM: É enorme. Todas as consequências da pesquisa espacial têm várias aplicações na telecomunicação, na medicina, no entendimento do povo. Eu acho que não se pode medir pesquisa espacial. A ecologia, por exemplo, a preocupação com a conservação da Terra, surgiu exatamente dessa pesquisa, dos satélites artificiais que levantam a nossa vegetação e os nossos oceanos. Antes não existia muita preocupação com isso.

– VR: É. Hoje, toda a observação de inteligência, climática, meteorológica é feita a partir do espaço.

RM: E isso graças à pesquisa espacial. Até na diversão, no futebol. Por exemplo, antigamente não se podia acompanhar um jogo em tempo real, você via tudo depois do acontecido.

– VR: Havia uma defasagem, e via-se em preto e branco. Hoje se vê em cores e praticamente em tempo real.

RM: Ou a fotografia digital, que é uma tecnologia que veio da pesquisa espacial. E hoje todo mundo também tem celular. E por aí você vê o tamanho da importância da pesquisa espacial. Acho que no futuro ela continuará tendo o mesmo peso de antigamente. O que se gasta com a guerra, com bombas, etc. é muito maior do que o que se gasta com a pesquisa espacial. A pesquisa espacial dá uma mobilidade muito grande, já que, uma vez com ela na mão, você também tem a capacidade de usá-la tanto nos equipamentos bélicos quanto na defesa.

– VR: Professor Mourão, a pesquisa espacial é ilimitada, ou o senhor estabelece algum limite para ela? Há algum ponto que a pesquisa espacial não pode ultrapassar?

RM: Tudo isso depende da tecnologia. O universo para mim não teve nem começo nem fim, ele sempre existiu e vai ser sempre infinito. Agora, nós também não podemos imaginar o que vai acontecer com a pesquisa. Seria a mesma coisa que, nos tempos dos descobrimentos marítimos, você falasse em televisão em tempo real ou em telecomunicações. Ninguém poderia imaginar isso.

– VR: Exatamente. Mas eu gostaria que o senhor falasse também sobre a sua vida literária. O senhor é autor de vários livros, como “Ecologia Cósmica”, “Nas Fronteiras da Intolerância”, “O que É Ser Astrônomo”. E eu lhe pergunto: o que é ser astrônomo?

RM: É você ver o universo de um ponto de vista muito mais humilde. Ver que o homem é muito pretensioso e que as coisas lhe parecem muito pequenas. Você só consegue entender a grandiosidade e a importância da vida quando começa a ver que a gente é resultante de uma evolução, de uma biologia. Tudo isso está mudando muito, e a maioria dos astrônomos tem uma visão muito humanística da vida.

– VR: Os ouvintes do programa Voz da Rússia percebem que, além de um grande cientista, o Professor Ronaldo Mourão também é um grande filósofo, e um de seus livros é “Astronomia e Budismo”. Há alguma conotação religiosa nesse livro? Porque sempre há aquela dicotomia entre ciência e religião. Quem se dedica à ciência teoricamente não pode abraçar a religião, e vice-versa. O senhor também tem esse tipo de pensamento?

RM: Acho que não. Acho que tem que ter tolerância. Cada grupo tem a sua religião, e a gente tem que respeitar essa diversidade. As pessoas têm as suas pretensões, e o Deus é único.

– VR: O senhor acredita em Deus?

RM: Eu acredito e não acredito. Eu tenho dúvidas sobre muita coisa. Mas eu acho que o budismo é muito diferente de todas as outras religiões, porque ele não se envolve na ciência, ele deixa que a ciência dê os seus resultados. Mas também há outras seitas budistas que são mais autoritárias. Assim como há pessoas que são autoritárias. Não é só o cientista que quer impor, mas também as pessoas querem impor a sua religião. O bom é não ter preconceito nem de raça nem de nada. Todos nós somos nascidos na mesma fonte que a teoria da evolução nos mostra.

– VR: O senhor disse ainda há pouco a palavra tolerância – respeito pela diversidade, respeito pelo ser humano. E eu gostaria que o senhor falasse sobre suas obras mais específicas. Obras que o senhor publicou no Japão e em Formosa. Eu não consegui lê-las, porque as três estão escritas nos seus respectivos idiomas…

RM: São exatamente sobre budismo e astronomia. Foi um diálogo que eu tive com um japonês chamado Daisaku Ikeda­­­­­­­, nas duas vezes em que estive no Japão. E nós discutimos sobre a filosofia aplicada ao budismo e à astronomia.

– VR: E, portanto, a ciência está de mãos dadas com a filosofia… E o seu “Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica”, quanto tempo de preparação ele exigiu do senhor?

RM: Exigiu uns 15 anos de preparação lenta. E agora eu o estou atualizando, porque a última edição, maior, foi lançada há 10 anos, e de lá para cá as coisas já mudaram muito.

– VR: Nós, sabendo da sua dedicação à astronomia, temos consciência de que o senhor não ficará satisfeito, e que pretende atualizá-lo e aprofundá-lo. Que aspectos, então, o senhor pretende introduzir nessa atualização do “Dicionário”?

RM: Vou atualizar as últimas descobertas. Da origem do universo, da evolução, da astronomia, da evolução aplicada à astronomia do desenvolvimento do universo. E também atualizar as missões e as novas descobertas, já que nesses últimos anos houve uma evolução muito grande graças às tecnologias das sondas espaciais.

– VR: Ronaldo Rogério de Freitas Mourão, o programa Voz da Rússia e o site Diário da Rússia agradecem por nos ter concedido esta entrevista tão esclarecedora. RM: Gostaria de agradecer muito. E também de cumprimentar. Acho muito importante essa troca de interesses e de ideias que vocês realizam. É muito bom ver que o Brasil também tem uma importante participação na divulgação do que ocorre na Rússia. Com isso, as pessoas ganham um entendimento de que somos todos seres humanos, e que lá também existem as mesmas preocupações e as mesmas ideias que existem aqui. A dificuldade da língua não é tudo, e nós temos que ultrapassar essa dificuldade e nos comunicarmos mais.

Fonte: Voz da Rússia