“A opção islâmica não é fatal”, diz analista sobre crise árabe

Lúcia Müzel
Direto de Paris

Desde que a temperatura aumentou nos protestos contra Hosni Mubarack, presidente do Egito, e que as lideranças muçulmanas começaram a se tornar protagonistas na transição de poder na Tunísia, depois da queda do presidente Zine el-Abidine Ben Ali, as inquietudes sobre o futuro político na região aumentam. Para entender melhor que tipo de democracia pode estar emergindo na África do Norte e no Oriente Médio, o Terra ouviu Barah Mikaïl, pesquisador da Fundação para as Relações Internacionais e o Diálogo (Fride), de Madri, e ex-diretor de pesquisas em Oriente Médio e África do Norte no Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris), de Paris.

O especialista, autor de uma dezena de livros sobre a região e suas relações com o restante do mundo, explica que os ocidentais não precisam temer uma invasão de islâmicos ao poder, já que as manifestações que estão derrubando ditaduras de décadas são legítimas e refletem anos de insatisfação popular. “Temos tendência a colocar todos os islâmicos no mesmo saco de Bin Laden, mas a realidade não é essa”, afirma Mikaïl. Confira abaixo a entrevista, realizada na quinta-feira.

É preciso ter medo da democracia que emerge no Oriente Médio e na África do Norte?
Seria um erro e uma prova de hipocrisia se os países ocidentais começassem a lamentar os sinais de democracia que começam a emergir na região. Não podemos, de um lado, lamentar a falta de democracia e abertura política, e de outro, demonstrarmos preocupação porque vemos que a população é a favor de certas reformas. Quando uma população decide por ela mesma e fala pela própria voz – e é essa a diferença em relação ao Iraque e ao Afeganistão -, dizendo que “queremos outra coisa, queremos mais abertura política”, é totalmente legítimo. Não temos o direito de questionar isso.

Essa democracia poderá abrir a porta para entrada de radicais islâmicos ao poder?
Muito honestamente? Não sei. Mas não tenho a impressão de que os islâmicos sejam a única alternativa ao poder atual. E mesmo assim, não é porque eles são islâmicos que eles são antiocidente. Temos tendência a colocar todos os islâmicos no mesmo saco de Bin Laden, mas a realidade não é essa. A Irmandade Muçulmana egípcia tem um projeto nacional. Podemos estar, ou não, de acordo com este programa. Mas na minha opinião, quem deve aprová-lo, ou não, são os egípcios. E se temos uma Irmandade Muçulmana que não dá um golpe de Estado, mas sim se candidata às eleições, ao lado de outras formações políticas, deixemos os egípcios julgá-la e testar os próprios anseios e consciência política.

E se eles de fato chegarem ao poder?
A opção islâmica definitivamente não é fatal: não podemos tentar julgar agora o que aconteceria. Antes de nos perguntarmos este tipo de questão, percebamos que o que favorece os islamismos radicais é o reforço do poder de autocratas, como era o caso do ex-presidente Ben Ali, na Tunísia, e do próprio Hosni Mubarack. É preciso pararmos de dizer “se as pessoas que estão no governo partirem, nós teremos islâmicos no poder”. Não! Não é verdade, e mesmo se fosse, acredito que os islâmicos egípcios têm consciência de que o que está nas mãos deles é para ser construído junto com os ocidentais, se eles quiserem se manter no poder.

Qual é o peso dos islâmicos no Egito e na Tunísia?
No Egito, é bem mais forte. Inclusive, a matriz ideológica da Irmandade Muçulmana da Tunísia nasceu do Egito, em 1928, onde a Irmandade tem um papel importante e foi essencial para ascensão de Nasser ex-presidente Gamal Abdel Nasser ao poder, em 1952. Outro ponto é que, desde os anos 80, eles compreenderam que a melhor maneira de serem populares era de misturar a sociedade, aumentando as ações de caridade, dando mais dinheiro ao povo, construindo projetos e levando água aos domicílios.

O resultado é que, nas eleições legislativas de 2005, a Irmandade Muçulmana egípcia conseguiu uma base bastante importante, passando de 14 para 88 deputados. Mesmo assim, duvido muito que essa base seja majoritária neste momento e que o futuro do Egito esteja nas mãos da Irmandade Muçulmana. A única vantagem deles é que parecem ser os únicos que estão bem estruturados, com um discurso e um programa definidos, e que falam diretamente aos egípcios. Os demais partidos são ou fracos, ou hipócritas, além de todos ainda não terem tido o tempo necessário para se estruturarem. O importante é que, se emergir um regime democrático no Egito, vai ser preciso considerar a Irmandade Muçulmana.

O presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad é muito mal visto pelo Ocidente e é mesmo considerado uma ameaça. Existe uma chance de termos Ahmadinejads no Egito ou na Tunísia?
Isso não pode ser excluído. Pode haver pessoas como Ahmadinejad que se mostrem contra uma abertura democrática. Pode acontecer. Mas não esqueçamos que Ahmadinejad é o produto de um contexto, segundo o qual era necessário que ele se afirmasse. Porém, ao mesmo tempo, não significa que todo mundo o aprovasse na região. A maioria dos árabes não gosta dele. Na Tunísia, não sabemos onde vamos parar, mas não temos a certeza de que não estamos indo em direção à consagração do Ennahdha, o partido islâmico. Seja como for, estou certo de que a consagração do Ennahdha não significaria uma nova política anti-Ocidente. O caso iraniano é uma exceção e acho que não devemos esperar que seja repetido na região. O que a população quer agora é uma mudança, mas não uma mudança de radicalismo antiocidente.

Nas últimas semanas, questionou-se se as revoltas no Oriente Médio e na África do Norte haviam nascido no povo ou se poderiam ser fruto de interesses externos, ou mesmo internos, que não estejam claros. O que você acha dessas suposições?
No caso tunisiano, trata-se de um movimento claramente nascido no povo. Este movimento interno permitiu aos egípcios de ter a audácia de ir tão longe. Se não tivesse acontecido o caso precedente, na Tunísia, a contestação egípcia continuaria presente – afinal, ela existe há mais de cinco anos. Mas os egípcios talvez não tivessem a coragem de ir tão longe quanto foram hoje. Acho que devemos imediatamente parar de sugerir uma agenda exterior. Existe, lá, uma frustração econômica e política há muito tempo, e o resultado dela é que agora os povos estão exigindo mudanças. Há conservadores na sociedade egípcia, há islâmicos, mas quando olhamos para o que provocou essa manifestação, vemos que foi um movimento de jovens conectados às redes sociais e à internet e que tem anseios de cidadãos.

Onde você considera que as eleições serão realizadas com maior transparência e legitimidade: na Tunísia ou no Egito?
Acho que vão ser mais fáceis no Egito do que na Tunísia, porque na Tunísia o sistema em vigor era o de jamais ter havido democracia: lá, vai ser preciso construir a democracia do zero. No Egito, não há democracia no senso literal, mas as eleições legislativas representam, de fato, as correntes divergentes.

Que tipo de governante você acha que está mais propenso a ascender ao poder no Egito?
Não vejo o regime atual cair. Mubarack, eventualmente, sim. Acho que solução vai ser de os opositores dizerem que estão prontos a negociar, como pediu Mubarack, mas com a condição de que ele deixe o partido. Com ele indo embora, eles negociarão com o número dois, nomeado por Mubarack. Não há uma rejeição completa do regime, por enquanto. Os egípcios só dizem que querem se livrar de Mubarack. Se eles tivessem um presidente menos pró-americano, menos flexível nas relações com Israel e que lhes permitisse comer melhor, eles o teriam mantido no poder. Agora, eles querem um presidente mais cético face aos israelenses, menos submisso aos americanos, e que lhes propicie comida e emprego.

Qual você acha que será o próximo capítulo desta onda de revoltas na região? Quais os próximos países propensos a aumentar as pressões contra os governos autoritários?
Antes, espero que se consolide alguma coisa na Tunísia e no Egito, pois por enquanto não há nada. É difícil de avaliar como as coisas vão evoluir, mas acho que os países onde há mais “riscos” de uma onda democrática são o Marrocos e a Argélia, especialmente. Há manifestações na Síria e no Bahrein, mas, nestes lugares, os regimes são muito mais fortes, ou seja, é mais complicado. Acho que o que pode acelerar a onda é a partida de Mubarack. Se as pessoas verem que a revolta está efetivamente dando certo onde está acontecendo, elas vão se encorajar para realizar processos similares nas suas regiões. Mas se Mubarack conseguir se manter, acho que vai ter um efeito de dissuasão importante das manifestações.

Fonte:  Terra

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