Realpolitik e "Política de Princípios"

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Sugestão: Gérsio Mutti

Alexandre Gomes

Resumo: O presente artigo examine algumas concepções que opõem uma “política de princípios” à chamada “Realpolitik” tentando demonstrar que os termos são em geral ilusórios tanto quanto aos seus resultados quanto aos seus sentidos. O eixo do artigo é que as visões utópicas – “de princípio” – em geral baseiam-se numa concepção totalitária da sociedade.

Palavras-chave: Política, Teoria Política, Maquiavel, Morus, Kissinger, Utopias

“O apelo (…) ao altruísmo inculca uma certa imprevisibilidade; o interesse nacional pode ser avaliado, o altruísmo depende da definição que lhe dê o praticante” (Kissinger, Diplomacia)

Analisando a história da política externa americana o pragmático e polêmico chanceler americano – nascido na Alemanha – destaca o paradoxal efeito das diferentes visões de Roosevelt e Wilson. Enquanto o primeiro defende uma participação ativa no cenário mundial e a adoção dos valores da política de equilíbrio de forças que caracteriza a política européia, o segundo defende um distanciamento destes velhos modelos e uma revolução moral que seja capaz de construir uma paz mundial. Não obstante estes pontos de partida, a política de Roosevelt deixou os Estados Unidos fora de conflitos e a de Wilson não só arrastou seu país à 1ª Grande Guerra como ainda serviu de alavanca à atual política de “polícia global” tão cara hoje aos americanos.

A lição do velho chanceler serve a muitas outras áreas distantes das Relações Internacionais, até mesmo para os micro-conflitos da política local. Muitas vezes por detrás de velhos princípios e elevadas aspirações esconde-se, até de forma inconsciente, uma política guerreira, violenta, inescrupulosa até. “Os estadistas, mesmo os guerreiros, enxergam o mundo em que vivem, já para os profetas o ‘mundo real’ é aquele ao qual querem dar vida”, diz Kissinger chamando a atenção para os perigos de uma “política de princípios”.

A opressiva Utopia

Há, enfim, duas diferentes formas de ver a política, uma é “Realpolitik” que enxerga a política como ela é; outra é a visão da política como ela deveria ser. Uma é “O Príncipe” de Maquiavel, outra a “Utopia” de Thomas Morus. Ambas pertencem a mundos diferentes, a campos absolutamente diferentes do conhecimento e da mistura – e confusão – das duas surgem aberrações que a história registra como catástrofes.

A Utopia, longe de ser um retrato de um mundo ideal no qual todos gostariam de viver – como pensam aqueles que conhecem o livro só de nome – é a descrição de uma sociedade de totalitarismo inevitável.

Alguns pequenos trechos do livro de Morus demonstram isso com clareza: “os viajantes se reúnem para partir em conjunto; munem-se duma carta do príncipe que fixa o dia do regresso”; “como nada se pode dizer ou fazer que não seja percebido pelos vizinhos, assim a gravidade dos velhos, o respeito que eles inspiram, contém a petulância dos jovens, impedindo-lhes sair da medida tanto nas palavras como nos gestos”, “cada um, constantemente exposto ao olhar de todos, se sente na feliz contingência de trabalhar e repousar, conforme as leis e os costumes do país” e este trecho em especial: “É entre os letrados que se escolhem os embaixadores, os padres os traníboras e o príncipe (…) O resto da população ativa não exerce senão profissões úteis.”

Cidadania maquiavélica

No contraponto a Realpolitik tem o texto repleto de conselhos cruéis de Maquiavel, a justificativa dos meios pelos fins, mas sobretudo um respeito à sociedade e a crença que a população ainda que erre no particular é capaz de acertar no geral, a noção que é da participação da sociedade – com seus erros e acertos – e no respeito mútuo entre Príncipe e cidadãos – ainda que imposto pelo temor – que reside a estabilidade dos Estados. O temor é necessário sobretudo porque se respeitam as diferentes forças e vontades, o homem – para Maquiavel – não é aquela massa amorfa que um indivíduo iluminado pode moldar como quiser e tudo impor a ela – como é para Platão, Morus, Hitler ou Stalin – mas sobretudo alguém dotado de vontade própria que nem sempre corresponde às vontades do Estado ou do Príncipe.

A Realpolitik, cuja prática remonta à Antigüidade mas cuja formulação no Ocidente é sobretudo obra de Maquiavel, implica necessariamente no reconhecimento destas vontades próprias que devem ser conquistadas pelos argumentos ou pela força.

O povo entra na história do pensamento ocidental em grande parte pelas mãos de Maquiavel, que identifica-o como ser dotado de vontade, capaz de decisão e ansioso pela liberdade: “(…) o povo não deseja ser governado nem oprimido pelos grandes, e estes desejam governar e oprimir o povo”. E ainda: “o objetivo do povo é mais honesto do que o dos poderosos; estes querem oprimir, aquele não ser oprimido”. Além da advertência severa de Maquiavel: “Contra a hostilidade do povo o príncipe não pode se assegurar nunca, porque são muitos; com relação aos poderosos é possível por que são poucos”.

Realpolitik e ‘Política de princípios’

O leitor mais ansioso deve estar se perguntando o que estas coisas, o que este artigo talvez pedante tem a ver com questões práticas, objetivas e atuais. Para se chegar a este ponto é preciso constatar que em geral a chamada “política de princípios” na melhor das hipóteses esconde uma visão totalitária da política. Normalmente recheada com doses de profetismo e pitadas de messianismo, a “política de princípios” baseia-se no conceito de que algumas pessoas – não por mera coincidência os autores destes princípios ou aqueles que em nome destes exercem, ou pretendem exercer, o Poder – devem deter as prerrogativas de dizer a forma pela qual a política – e mesmo a sociedade – deve ser organizar, reservando a eles próprios papel de destaque, de vanguarda, neste processo.

Foi uma noção inaugurada por Wilson na política externa americana de uma missão nobre de implantar uma ordem moral nas Relações Internacionais que é utilizada, até hoje, como meio de legitimar a Nova Ordem Mundial dominada pelos Estados Unidos. Esse talvez seja a essência do livro de Kissinger.

Como foi dito, isto é na melhor das hipóteses, em geral há outro problema muito mais sério. Foi dito acima que a visão da política como ela é e a formulação de teorias sobre como ela deveria ser são pertencentes a campos distintos – ainda que se comuniquem – do conhecimento. Em geral a chamada “política de princípios” esconde por debaixo de si visões muito realistas, no melhor estilo “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”.

Há ainda uma terceira possibilidade teórica de interação entre estas duas visões da política, aquela na qual uma “política de princípios” se rende a uma estratégia da Realpolitik para chegar e manter-se no Poder enquanto implanta seu programa autoritário de reformas. Assim não é estranho que Hitler e Lenin, portadores de uma “política de princípios” – por mais que se conteste estes princípios, eles eram inegavelmente princípios – foram igualmente mestres da Realpolitik a ponto de “passar a perna” nas velhas raposas.

Portanto a vindicação de uma “ética na política” é, não raro, ou a tentativa de impor um conjunto de valores à sociedade de forma autoritária ou uma maneira de camuflar objetivos muito menos nobres. E isto Não é válido apenas para as altas esferas da política internacional, mas também na vivência cotidiana do poder local, na esfera da micro-política que rege a política municipal ou até mesmo as relações de poder dentro de empresas e instituições.

Há portanto duas concepções da política – de um lado a que enxerga a política como ela é, de outro a que a enxerga como ela é – para poder chegar a questões mais práticas voltadas para a eleição do próximo ano, peço, portanto, um pouquinho mais de paciência ao leitor na esperança que a continuação da análise ainda hoje não será de todo inútil para se tentar compreender as forças que disputarão a política local.

As duas visões da política impõem duas estratégias diferentes, ou uma crença – quase sempre injustificada e de conteúdo meio religioso – que “a verdade prevalecerá e portanto pode-se em geral ignorar as condições concretas na qual as batalhas serão travadas. De outro a chamada Realpolitik que – até com certa dose de cinismo – tenta explorar todas as possibilidades da busca da hegemonia ou do equilíbrio, sem levar em grande consideração valores morais ou ideologias políticas. A primeira em geral rejeita alianças e descarta qualquer compromisso com o inimigo principal ou secundário – só pode ser vitoriosa, portanto, a partir de uma aniquilação total do adversário. A segunda jamais deixa ao exército o papel que pode ser desempenhado pela política, tenta enredar o adversário numa trama de alianças ocasionais na qual as preferências políticas e ideológicas tem muito pouca importância.

Política ineficiente

Muitos provavelmente argumentarão que não existe algo como “política de princípios” e a grande verdade é que quase sempre ela serve apenas para encobrir outros tipo de interesse. Porém é preciso enxergar mais longe para ver que existe de fato um “política de princípios” em diversas forças políticas, mas que esta quase sempre não prospera por dois motivos básicos. Em primeiro lugar ela é ineficiente, já que dificilmente se baseia numa análise objetiva da realidade e quase sempre abre mão dos recursos políticos – em especial alianças – que a permitiriam ser vitoriosa.

Em segundo lugar – e esta característica será mais importante como se verá em breve – a noção de uma vitória sem compromissos, de uma vitória total, torna seu objetivo tanto mais distante da realidade como mais assustador para os adversários, afinal impõe a eles o enfrentamento de “vida ou morte”. Este medo é um grande gerador de alianças na parte contrária.

Isto não significa, de forma alguma, que a “política de princípios” não possa se sair vitoriosa, ainda que a história demonstre que isto seja raro e que ela no mais das vezes conduz a desastres. Kissinger, no livro citado ontem, destaca o que seria, de certa forma, o primeiro confronto dos dois modelos na Guerra dos Trinta Anos no qual os dois principais atores foram ao Habsburgo e o Cardeal Richelieu.

É evidente que a Realpolitik existia já na Renascença – como atestam as análises realistas de Maquiavel – mas Richelieu – destaca Kissinger – foi o primeiro que a formulou de forma clara, sem hipocrisias nem disfarces. Com a sua tese da Raison d’État o hábil cardeal baniu a moral da política e inaugurou uma nova forma de ver a política.

Do confronto de um Richelieu disposto a tudo para evitar o cerco da França pelos Habsburgo e a transformação da Alemanha em um Estado-Nação – não hesitando para isto de financiar e mesmo lutar ao lado dos protestantes contra o Imperador Católico – e de um Ferdinando fanático a ponto de mesmo esgotado pela guerra ser incapaz de ceder em pontos mínimos aos protestantes surgiu um mapa europeu que só recentemente se começa a mudar.

Contudo esta tendência não é inevitável – e tende a se tornar cada vez menos forte – em especial quando se tem um dos atores reunindo forças importantes e fôlego suficientes para enfrentar a batalha e – quase sempre inevitável – um mínimo de habilidade se não para fazer alianças explícitas, ser capaz de acordos tácitos que impeçam que o adversário as faça.

Bibliografia

Kissinger, Henry. Diplomacia. Tradução de Saul S. Gefter e Ann Mary Fighiera Perpétuo, Revisão da tradução de Heitor Aquino Ferreira. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Univer Cidade Editora, 2ª edição, 1999. 1008 páginas.

Maquiavel, Nicolau. O Príncipe in Maquiavel, Coleção Os Pensadores. Abril Cultural, 1973.

________________. Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Coleção Os Pensadores. UNB, 1979. 462 páginas.

Morus, Thomas. A Utopia. Edições de Ouro, 1961, 176 páginas.

Platão, A República, Editora Calouste Gulbenkian. Sd.

Alexandre Gomes é articulista do jornal Primeira Página de São Carlos (SP)

FONTE: Resenhas de Babel via UOL

2 Comentários

  1. Brilhante o artigo, parabéns! Concordo en gênero número e grau com o Sr. Kissinger. Mesmo sendo a encarnação de Maquiavel na era moderna, não posso negar-lhe a agudeza de raciocínio q

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