É um equívoco acreditar que as divergências sobre o Irã representam um afastamento entre Brasil e Estados Unidos
Murilo Ramos
A liturgia diplomática recomenda o uso cuidadoso das palavras para transmitir recados sem ofender ou constranger os interlocutores. Na semana passada, essa regra foi deixada de lado algumas vezes durante a visita ao Brasil da secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton. Ciente de que a emissária de Barack Obama pediria ao governo brasileiro sanções ao Irã, por descumprir acordos com a Agência Internacional de Energia Atômica, o presidente Lula se antecipou. “Não seria prudente encostar o Irã na parede. É preciso estabelecer negociações”, afirmou Lula, contrário às sanções. Hillary, em uma entrevista coletiva no Itamaraty, afirmou que os iranianos enganam o Brasil. Segundo Hillary, o Irã apresenta versões diferentes para China, Turquia e Brasil sobre o programa nuclear e, assim, tenta ganhar apoio e evitar punições das Nações Unidas (ONU).
Uma análise superficial das alfinetadas entre Lula e Hillary pode levar à falsa conclusão de que os atritos políticos afastam Brasil e Estados Unidos. Na prática, acontece o oposto. Ao mesmo tempo que divergem publicamente, os dois países aperfeiçoam o diálogo e consolidam avanços importantes em questões essenciais para as duas maiores democracias das Américas. Apesar da troca de farpas no caso do Irã e da existência de vários pontos de conflito (leia o quadro na página 54), Brasil e Estados Unidos vivem uma fase de estreitamento das relações, uma consequência do crescente prestígio do Brasil no cenário internacional.
A mudança no patamar das conversas pode ser observada na lista crescente de assuntos de política externa que, nos últimos tempos, mereceram consulta dos Estados Unidos ao Brasil. O governo Obama procurou o Brasil para tratar da crise política em Honduras, da instalação de bases militares americanas na Colômbia, da missão de paz da ONU no Haiti e da ajuda às vítimas do terremoto no Chile. Os americanos também travaram diálogos com diplomatas brasileiros sobre a Conferência do Clima, realizada na Dinamarca no final do ano passado. Com frequência, buscam também informações a respeito de temas como energia e combate à fome.
Existe uma espécie de ranking das embaixadas dos Estados Unidos ao redor do mundo. ÉPOCA apurou que a representação no Brasil subirá de status. Ainda não chegará ao mesmo nível da embaixada em Londres ou em Tóquio, mas contará com mais recursos para executar suas crescentes atividades. O diplomata Thomas Shannon deixou o importante cargo de subsecretário para a América Latina no governo Obama para se tornar embaixador em Brasília. Nos últimos meses, funcionários de primeira linha da Casa Branca desembarcaram em Brasília na tentativa de costurar parcerias e prospectar negócios. Os Estados Unidos estão empenhados em vender 36 caças da Boeing para a Força Aérea Brasileira em uma concorrência com França e Suécia.
Os Estados Unidos enxergam o Brasil, ao lado do Chile, como uma ilha de estabilidade em meio a uma região turbulenta. Primeiro por tratar-se de uma democracia consistente, com eleições regulares e respeito às instituições. O exemplo contrário é a Venezuela, país governado pelo mesmo presidente há 11 anos. Histriônico, Hugo Chávez limitou a ação da iniciativa privada, reestatizou empresas e amordaçou a imprensa que o incomodava (leia mais na página 59). Ao contrário de Chávez, que adora fazer bravatas contra os americanos, Lula sempre procura posições negociadas nas disputas diplomáticas. Essa postura rende pontos para o Brasil com os americanos.
A segunda razão do crescente interesse dos EUA pelo Brasil é de natureza econômica. O Brasil foi um dos países menos atingidos pela crise global dos dois últimos anos. Tem o maior mercado consumidor da América Latina e centenas de empresas atraentes, fontes de inovação e potenciais alvos de investimento. “O Brasil é muito mais importante hoje que há 20 anos e uma potência mundial em vários assuntos”, diz um diplomata americano que acompanhou a visita de Hillary.
A embaixada dos Estados Unidos no Brasil vai mudar de status, com mais dinheiro e atribuições
Na avaliação do especialista em relações internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Eduardo Viola, a nova situação das relações entre Brasil e EUA ganhou um impulso com o presidente Barack Obama, defensor de posições menos hegemônicas dos Estados Unidos. Agora, de acordo com Viola, o Brasil precisa proteger o capital estratégico conquistado. Para isso, deveria evitar armadilhas como o apoio ao Irã em sua temerária política nuclear. “Até a Rússia, que não se alinha facilmente com os Estados Unidos, já defende sanções ao Irã. Se o Brasil insistir nisso, pode parecer que tem interesse em assuntos nucleares que não sejam pacíficos”, diz Viola.
O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, resiste à entrada do Brasil no grupo dos países que condenam a política iraniana. Na entrevista coletiva que concedeu ao lado de Hillary Clinton, Amorim afirmou que, há alguns anos, a comunidade internacional fez uma campanha contra o Iraque e os resultados foram desastrosos. Ao persistir nessa política em relação ao Irã, o risco do Brasil, porém, é cair no mesmo isolamento em que ficou em relação ao desfecho da crise política em Honduras. Enquanto os EUA apoiaram a realização das eleições como forma de apaziguar o país depois da crise política que levou à s deposição do ex-presidente Manuel Zelaya, o Brasil continua sem reconhecer o governo do presidente eleito Pepe Lobo. Nessa posição, o Brasil ficou na companhia de sócios menores como Venezuela e Bolívia.
Para o Brasil, evitar posições antagônicas, motivadas por um antiamericanismo estéril ou pelo afã de tentar mostrar protagonismo no cenário internacional, é importante porque os EUA, além de um parceiro comercial importante, tendem a permanecer como a potência econômica dominante no mundo por algumas décadas. A recente evolução das discussões bilaterais também é insuficiente para colocar o Brasil na condição de parceiro preferencial dos Estados Unidos. Segundo o ex-embaixador do Brasil em Washington Rubens Barbosa, o que existe é um diálogo franco, mas nada que lembre privilégio. “O Brasil não está na mesma situação que o Reino Unido ou a França. Mas hoje recebe dos Estados Unidos um tratamento diferenciado, parecido ao oferecido a alguns países da Europa Ocidental, como a Espanha”, afirma Barbosa.
Com a aproximação do fim do mandato de Lula, surgem dúvidas sobre como se comportará o próximo governo em relação aos temas mais espinhosos do contencioso com os americanos. No caso da política em relação ao Irã, há uma divergência explícita entre a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, a candidata do PT, e o governador de São Paulo, José Serra, provável candidato do PSDB. Em entrevista a ÉPOCA, Dilma disse que não é possível isolar o Irã, sob o risco de fortalecer ainda mais a liderança do país na região. Dilma fez uma crítica indireta aos Estados Unidos ao dizer que “não tem o menor sentido os que se armam apontarem seu dedo armado para os outros” e defendeu o desarmamento nuclear. Serra pensa diferente. Em artigo escrito no final de 2009, o governador se manifestou contra a visita do presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, ao Brasil. Para Serra, é um risco aliar-se a um regime que desrespeita os direitos civis e resoluções aprovadas pela ONU.
Não se espera, porém, mudanças radicais na maioria dos assuntos. Isso é um bom sinal de maturidade política do Brasil. Política externa é uma política de Estado que deve zelar por interesses permanentes do país, independentemente do governo de plantão. Se quer entrar no clube dos grandes, o Brasil não deve permitir improvisos em sua agenda diplomática.
Os conflitos na relação
Brasil e Estados Unidos continuam a divergir em relação a vários assuntos, mas a conversa mudou de patamar.
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