Pedro da Motta Veiga
O Brasil acelerava sua trajetória de crescimento quando a crise internacional irrompeu, no último trimestre de 2008, interrompendo um círculo virtuoso de crescimento do produto, do investimento e do emprego, reduzindo os fluxos de comércio exterior e de investimentos externos de e para o País.
Pouco mais de um ano após a eclosão da crise, a importância global do Brasil parece ter aumentado. Isso se deve certamente ao fato de que, contraposto ao abalo monumental sofrido pelas economias desenvolvidas e por algumas das grandes economias emergentes (Rússia e México), o desempenho brasileiro em 2009 gera a percepção de um upgrading da posição brasileira no cenário internacional. Mas também contribuem para essa percepção de importância aumentada do País no mundo as perspectivas positivas da economia brasileira no pós-crise e alguns movimentos importantes feitos pelo Brasil em diferentes arenas de negociação econômica.
Especificamente ao longo de 2009, três evoluções nas posições negociadoras do Brasil merecem destaque:o compromisso com uma meta voluntária, mas quantificada e monitorável, de redução de emissões de gases de efeito estufa nas negociações de mudança climática;o deslocamento da prioridade brasileira, no G-20, de temas relacionados ao comércio internacional (crédito para as exportações e protecionismo) para questões relacionadas aos desequilíbrios macroeconômicos internacionais, a partir da Cúpula de Pittsburgh, em setembro;e a decisão de fornecer crédito ao Fundo Monetário Internacional (FMI), por meio da compra de US$ 10 bilhões em títulos emitidos pelo fundo.
Esses três movimentos do Brasil nas arenas de negociação econômica global chamam a atenção, em primeiro lugar, por serem tipicamente “individuais”. Ou seja, traduzem iniciativas do Brasil como ator individual e autônomo na cena internacional, distanciando-se de movimentos feitos em conjunto com outros países, como os Brics ou os “países em desenvolvimento”. A posição brasileira de apoio ao “pacote Lamy” na Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), em julho de 2008, já apresentara essa característica: ao assumir explicitamente sua posição, o Brasil se distanciou de posturas de coalizão e de fidelidade retórica a blocos, sejam eles os “países em desenvolvimento” ou o Mercosul.
Os dois primeiros movimentos distanciaram o Brasil da posição negociadora chinesa em duas áreas-chave da agenda internacional. No caso da mudança climática, o presidente Lula criticou explicitamente a hipótese de um entendimento bilateral entre China e EUA às vésperas de Copenhague. No caso da agenda do G-20, a China tentou minimizar a importância das questões relacionadas aos desequilíbrios macroeconômicos internacionais e evitar que o tema da avaliação pelo FMI das políticas nacionais de saída de crise ganhasse prioridade, enquanto o Brasil pôs crescente ênfase nessa questão.
Em segundo lugar, esses movimentos apontam para um maior envolvimento do Brasil com temas de governança global. Historicamente, na matriz brasileira de formulação de políticas e posições negociadoras, não há tradicionalmente espaço para agendas de governança global. A concessão de crédito ao FMI e a evolução da postura brasileira diante da negociação da mudança climática indicam que há algo de novo aí.
Essas considerações nos levam à seguinte questão: as evoluções ocorridas em 2009 prenunciam mudança mais ampla em benefício dos interesses domésticos ofensivos nas negociações internacionais e na direção da integração de objetivos sistêmicos (relacionados à governança global) à agenda brasileira?
No cenário pós-crise vigente no Brasil, esse tipo de evolução tende a ganhar novo impulso. Isso não significa que as posições brasileiras nas arenas de negociação econômica global seguirão trajetória linear e definível ex ante. Sua evolução dependerá principalmente das percepções domésticas dos impactos e implicações da “globalização”, bem como do ambiente político internacional no pós-crise.
Do lado doméstico, há fatores que fortalecem percepções otimistas em relação às oportunidades que se abrem para o Brasil no cenário global. Entre esses fatores se destacam o bom posicionamento brasileiro nos ciclos de investimentos internacionais pós-crise, em que a atratividade da economia brasileira cresce. Além disso, a posição do Brasil como supridor mundial de alimentos e matérias-primas deve se fortalecer e, passados os efeitos da crise, os investimentos externos das empresas brasileiras voltam a crescer.
Por outro lado, porém, a competição chinesa afeta a produção de um número crescente de setores industriais no Brasil. Preocupações com a globalização tendem a se concentrar no efeito China e esse efeito deixa de ser um problema de poucos setores industriais para preocupar um grande número de interesses solidamente estabelecidos no Brasil. Portanto, a percepção dos riscos associados à globalização e à interdependência também tende a se intensificar, mas não a ponto de comprometer uma “aposta” brasileira nas oportunidades da crescente integração ao mundo.
No que diz respeito ao cenário externo, a viabilidade de evolução da posição brasileira ao longo de trajetória ofensiva e de assunção de responsabilidades globais estará condicionada pela continuidade dos esforços internacionais de cooperação e negociação nas diferentes agendas globais. Na falta desse estímulo e em cenário internacional marcado pela fragmentação e por conflitos econômicos e políticos, é difícil imaginar que as percepções brasileiras da globalização não venham a ser negativamente afetadas.
Moral da história: um retrocesso (ou mesmo uma interrupção) no movimento de integração crescente da economia brasileira ao mundo nos próximos anos somente parece plausível se – como ocorreu nos anos 30 do século 20 – o ambiente político em que se dão as relações e negociações econômicas internacionais se deteriorar sob o impacto conjugado das muitas variantes de nacionalismos em circulação hoje no mundo.
Pedro da Motta Veiga é diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes)