Força da ONU ignorou avisos e apoiou soldados congoleses acusados de violar direitos humanos

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The New York Times
Jeffrey Gettleman

Nairóbi (Quênia)  —   De acordo com documentos das Nações Unidas obtidos pelo jornal The New York Times, o Escritório de Assuntos Legais da ONU escreveu ao chefe do departamento de manutenção da paz, em abril, e disse que os mantenedores da paz “não podem participar, de maneira nenhuma, de operações conjuntas” com o exército congolês “se houver razões substanciais para acreditar que existam riscos reais de violação de leis humanitárias internacionais”.

Os avisos se mostraram coerentes. Alguns meses depois, soldados do governo congolês, que haviam sido supridos com munição e alimentos pelos mantenedores da paz da ONU, mataram centenas de civis, estupraram meninas e chegaram a decapitar alguns jovens, segundo grupos de direitos humanos.

Muitos oficiais das Nações Unidas pareciam temer que isso aconteceria, e os documentos do escritório de assuntos legais revela o nível das discussões internas – e desconfortos – acerca de trabalhar lado a lado com o exército congolês, que ao longo dos anos foi amplamente acusado de saquear, estuprar e matar a mesma população que deveria proteger.

“Sabíamos que essa era uma operação de risco”, disse Alain Le Roy, subsecretário-geral das operações de manutenção de paz, numa recente entrevista. Porém, ele acrescentou, “não temos outra opção”.

O mandato para a missão de paz no Congo, uma das maiores do mundo, com 19 mil soldados, expira em algumas semanas. Espera-se que o Conselho de Segurança o renove, embora com condições mais rígidas a respeito da cooperação militar.

No entanto, não se sabe por quanto tempo os capacetes-azuis ficarão. O governo congolês se sensibilizou com a percepção de é sustentado por forças estrangeiras e pediu um plano de retirada à ONU. Autoridades das Nações Unidas agora dizem que o mandato pode ser estendido por apenas seis meses, e que depois disso a missão mudaria de manutenção de paz para reconstrução.

Claramente, não existem respostas fáceis para o Congo. Muitos analistas dizem que o país se tornou um ralo de apoio internacional, com fraco progresso, apesar dos bilhões de dólares gastos ali. O governo central, com base na capital, Kinshasa – essencialmente na costa oeste da África -, permanece perigosamente enfraquecido, enquanto a guerra continua dura a centenas de milhas dali, no leste de densas florestas. Os soldados congoleses muitas vezes não recebem seu pagamento, dizimando sua lealdade, enquanto diversos grupos armados, motivados por interesses étnicos, comerciais e criminosos, rondam as montanhas, atacando civis livremente.

Essa tem sido a situação por muitos anos, e os mantenedores da paz da ONU têm uma tarefa especialmente difícil, pois os dois princípios básicos de sua missão – proteger civis e ajudar o exército congolês a eliminar as forças rebeldes – colidem com frequência.

Recentemente, as forças de paz tiveram de confrontar essa situação graças à intensidade da atividade militar. Em janeiro, uma ofensiva conjunta do Congo e de Ruanda contra bases rebeldes gerou intensas mortes em represália. Em seguida, veio a ofensiva militar apoiada pela ONU, também focada em expulsar rebeldes, na qual os mantenedores da paz ajudaram a planejar as manobras, reabasteceram os soldados congoleses e os transportaram às zonas de batalha. Novamente, centenas de civis foram mortos e milhares ficaram desalojados. Segundo grupos de direitos humanos, o exército congolês foi responsável por grande parte das mortes.

“O Human Rights Watch documentou a morte deliberada, por soldados congoleses, de ao menos 270 civis”, afirmou a organização em um relatório de novembro. “A maioria das vítimas era de mulheres, crianças e idosos. Alguns foram decapitados. Outros foram mortos a golpes de facão, espancados até a morte com tacos, ou alvejados ao tentar fugir”.
Força da ONU se prepara para operação no Congo, onde apoio aos militares locais é criticado

Em novembro, a ONU cancelou o apoio a uma brigada congolesa acusada de massacrar civis. Mas muitos grupos de direitos humanos queriam que a ONU fosse ainda mais longe, o que também foi o conselho dos próprios advogados das Nações Unidas.

“Se as violações são graves ou generalizadas”, escreveram os advogados na carta de abril ao departamento de manutenção de paz, a missão “precisa cessar sua participação na operação como um todo”, e até mesmo usar força armada contra o exército congolês para proteger civis.

Le Roy disse que a ONU, depois que ficou sabendo dos crimes cometidos por soldados congoleses, analisou os riscos de retirar toda a operação.

“Era um dilema”, afirmou ele. A operação havia conseguido deslocar os rebeldes de suas bases e colocá-los nas matas, segundo Le Roy, e as autoridades da ONU temiam que “se finalizássemos a operação, eles poderiam voltar e aplicar represálias nas vilas. Isso era algo certo”.

Le Roy também disse que oficiais da manutenção da paz tinham preocupações próprias a respeito de trabalhar de perto com os militares do Congo, e que começaram a correspondência com o escritório de assuntos legais antes do início das operações – para garantir que todas as potenciais complicações estivessem cobertas.

“Nós colocamos todas as informações sobre a mesa”, disse ele, acrescentando que foi o Conselho de Segurança que tomou a decisão final de seguir com as operações militares, que continuam ativas.

O departamento legal também preveniu especificamente as autoridades de paz a não participar em quaisquer manobras de combate conduzidas por Jean Bosco Ntaganda, um comandante congolês procurado pela Corte Penal Internacional por acusações de crimes de guerra.

Bosco, um ex-rebelde amplamente conhecido como o Exterminador, e milhares de outros ex-rebeldes foram recentemente absorvidos pelo exército congolês, em um conturbado acordo de divisão de poder. Sob o acordo, antigos comandantes congoleses estão nominalmente na liderança, mas os ex-rebeldes controlam seus próprios territórios e chegam a impor seus próprios impostos. Um analista descreveu a situação como “uma insurgência em uniformes militares”.

Embora o governo congolês tenha garantido às forças de paz da ONU que Bosco não participou das últimas operações militares, um painel de peritos da ONU revelou documentos mostrando que Bosco era o sub-comandante das recentes operações e que, consequentemente, os mantenedores da paz estavam cooperando com um fugitivo procurado.

O presidente do Congo, Joseph Kabila, afirmou que ir atrás de Bosco poderia provocar mais derramamento de sangue e que neste momento, para o Congo, a paz é mais importante que a justiça.


Sugestão e colaboração: Konner

Fonte:  UOL