Honduras, China, Rússia e a soberania dos Estados

Em seu “Dicionário de Política”, Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino definem soberania do seguinte modo: “o conceito político-jurídico de Soberania indica o poder de mando de última instância, numa sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja organização não se encontra esse poder supremo, exclusivo e não derivado”.

Soberania, acrescentam, é a transformação da força em poder político, de poder de fato em poder de direito. É – segundo eles – o conceito jurídico-político que possibilita ao Estado moderno, mediante sua lógica absolutista interna, impor-se, inclusive, externamente. O monopólio da força (exército) e da edição de leis, por exemplo, decorrem da soberania. No mundo contemporâneo ela foi solapada pelo poder econômico.

Há dois pesos e duas medidas no que se refere à soberania dos Estados. Exemplo disso é o silêncio da ONU em relação ao genocídio dos uigures, os “chineses” muçulmanos, de Xingjiang. Não houve sequer condenação formal das violações brutais de direitos humanos praticadas pelo governo de Hu Jintao, que os trata como escravos.

Jintao abandonou a reunião do G8 em virtude de sua “revolta”, visando a contê-la. A China registrou crescimento de 7,9% de seu PIB no segundo trimestre deste ano e os maiores diários do mundo lançaram manchetes entrevendo o fim da crise global. A China foi o único país que cresceu, economicamente.

Na Chechênia, outra militante dos direitos humanos, Natalia Estemirova, foi assassinada, agora em julho, por denunciar a participação de dirigentes russos no genocídio local. Outra jornalista, Anna Politkóvskaya, foi igualmente assassinada por se confrontar com Vladimir Putin, em 2006 e, até agora, não se encontraram seus algozes.

Dimitri Medvedev e Putin foram poupados pela comunidade internacional. Interessa aos Estados Unidos e à Europa um pacto com a Rússia, para neutralizar o Irã e a Coreia do Norte. A Rússia é, hoje, uma confederação de máfias.

Chego ao ponto. A OEA (Organização dos Estados Americanos) interferiu, desde o primeiro minuto, no golpe de Estado de Honduras, condenando Roberto Micheletti, apesar de Manuel Zelaya estar – de acordo com a mídia internacional – vinculado ao narcotráfico.

Zelaya é amigo de Hugo Chávez e os Estados Unidos advertiram o mundo da “conversão da Venezuela em narcoestado”. Tanto a União Europeia quanto os próprios Estados Unidos suspenderam empréstimos para Honduras. Hillary Clinton telefonou nesta segunda-feira para Micheletti, de Nova Déli, lembrando-lhe que haverá consequências pela inaceitação da proposta do presidente de Costa Rica, Oscar Arias, que prevê governo hondurenho de união nacional, com Zelaya, e eleições em 2010. José Miguel Insulza, o presidente da OEA, vislumbrou na segunda-feira também cenário de guerra civil, caso Micheletti não negocie.

O curioso é que George Bush elegeu-se mediante um golpe – fraude eleitoral –  em 2000. O então concorrente democrata Al Gore tanto quanto seu partido calaram-se e assistiram – muitas vezes concordes – a supressão de direitos civis básicos dos cidadãos norte-americanos.

Hillary Clinton, atual ministra das relações exteriores do governo Obama, votou pela invasão ao Iraque, em virtude de Saddam Hussein controlar “perigosas armas químicas”. Até hoje, o governo estadounidense mantem uigures, presos na China, enjaulados em Guantánamo, sob a acusão de serem terroristas, ligados a Osama Bin Laden.

É evidente que sou contrário a qualquer golpe de Estado. O de Honduras reatualiza no imaginário mundial a ideia de uma América Latina bananeira – idéia conveniente, por um lado, num período em que os países ditos mais desenvolvidos precisam de matérias-primas baratas para se reerguerem.

A China e a Rússia são soberanas, Honduras não o é. Insulza chama Micheletti de “ditador”, mas, certamente, calar-se-ia diante de Vladimir Putin e Hu Jintao. O que há, em suma, é uma soberania econômica, que minou o conceito de soberania política, e que faz parte do desmonte de uma democracia, digamos, mais democrática no mundo.

O que há é uma democracia sem cidadãos. A China pratica um capitalismo de Estado, sem liberdades civis, mas isso importa pouco para os países que “defendem” o liberalismo (Estado mínimo), enquanto ela estiver liderando a retomada do crescimento. O mundo continua o mesmo.

Fonte: Último Segundo/ Régis Bonvicino