O avanço do mercado das submetralhadoras artesanais (e ilegais) no Brasil

Na época do Natal, Leonardo Russo Thomasi se veste como Papai Noel e trabalha em shoppings de Belo Horizonte tirando fotos com crianças. Em outros meses do ano, o senhor de 68 anos chegou a ser visto em um ambiente distinto: uma fábrica de fundo de quintal dedicada à produção de submetralhadoras artesanais. Thomasi foi preso na capital mineira no dia 23 agosto de 2016, acusado de porte e fabricação ilegal de armas.

Com ele foram apreendidas 19 armas: três pistolas, um fuzil, uma espingarda e 14 submetralhadoras artesanais. O objetivo de sua produção caseira era abastecer criminosos. Só naquele ano, o Estado de Minas Gerais apreendeu 42 submetralhadoras artesanais – pelo menos 14 delas eram da produção do “Papai Noel”. Procurado pela reportagem, o advogado dele informou que Thomasi aguarda o julgamento do recurso em liberdade, e seu processo corre em segredo de Justiça.

Em média, no Brasil, todos os dias a polícia apreende uma submetralhadora. Entre janeiro de 2013 e outubro de 2018, foram retiradas de circulação ou registradas em ocorrências mais de 2,6 mil delas – e 15% são de fabricação caseira.

A BBC News Brasil conseguiu com exclusividade, por meio da Lei de Acesso à Informação, dados de apreensões desse tipo de armas em todo o país. Dos 27 Estados consultados, apenas 12 forneceram dados sobre apreensões de armamentos, e somente 8 discriminaram o tipo de produção (artesanal ou industrial). Minas Gerais, São Paulo e Paraná lideram o ranking de ocorrências entre os Estados que forneceram os dados.

Analisar os dados sobre apreensões de armas artesanais é um desafio, uma vez que há um problema crônico de classificação dos órgãos de segurança. Marcas, calibres e tipos de armas são comumente trocados, dificultando a interpretação.

Para esta reportagem, a BBC News Brasil contou com o auxílio da agência de jornalismo Volt Data Lab e de pesquisadores do Instituto Sou da Paz para uma sistematização mais precisa das informações.

O levantamento mostra que as apreensões de submetralhadoras artesanais cresceram em praticamente todos os Estados nos últimos cinco anos. Para especialistas, o aumento das apreensões se deve, principalmente, à crise econômica e à disseminação de informações online sobre como fabricar uma arma foram apontados como principais fatores.

Armas rudimentares em mercado paralelo

Armas artesanais são aquelas adaptadas ou desenvolvidas de forma rudimentar, que não apresentam qualquer controle de qualidade ou certificação de segurança expedidas por órgãos oficiais. Muito comuns em áreas rurais, as garruchas, chumbeiras, soca tempero e outras variações estão nessa categoria e são feitas por ferreiros, serralheiros, torneiros mecânicos e leigos, que se tornam armeiros.

De acordo com especialistas ouvidos para esta reportagem, a maioria dos armeiros não pertence a facções criminosas, mas fornece armas a esses grupos.

A adaptação ou transformação de armas em submetralhadoras aumenta a capacidade de destruição: com um aperto no gatilho, é possível ter uma rajada com 30 ou mais disparos. Armas desse tipo abastecem um mercado paralelo que cada vez mais se torna atrativo para criminosos.

No Brasil, fabricar armas ou munições sem autorização pode render penas de quatro a oito anos de reclusão e multa. Além disso, a posse legal de armas automáticas é proibida aos cidadãos. O uso desse tipo de arma é restrito e permitido apenas para forças de segurança, e ainda assim são poucas as equipes policiais que têm acesso.

Em São Paulo, por exemplo, só a Rota, o Grupo de Operações Especiais e as Forças Táticas têm essa autorização. O fato de boa parte delas serem artesanais aponta uma busca por valores mais acessíveis. Para se ter uma ideia de valores, em 2012, a PM de São Paulo comprou 6 mil submetralhadoras Taurus SMT-40 por cerca de R$ 5 mil a unidade.

O delegado mineiro Emerson Morais explica que até 2014 eram poucas as armas artesanais apreendidas. Para ele, a crise econômica foi um dos fatores que levaram criminosos a procurar alternativas às armas industriais comercializadas de maneira ilegal.

“Eles migraram para esse tipo de arma artesanal que tem também um poder de fogo grande, porém o valor é bem menor que, por exemplo, uma (pistola) Akidal Ghost ou então uma Dersa. No mercado paralelo vai pagar em torno de R$ 12 mil, enquanto que uma submetralhadora de fabricação artesanal, o crime vai pagar R$ 5 mil. Então financeiramente para eles é mais interessante adquirir esse tipo de equipamento”, explica.

Exemplar apreendido em Minas Gerais

No mercado paralelo, o preço de uma pistola industrial acaba sendo muito próximo do preço de uma submetralhadora artesanal. Ou seja, por um valor menor os criminosos têm acesso a uma arma de fogo com poder de destruição muito maior, como é o caso de uma submetralhadora. Uma submetralhadora industrial comercializada no mercado paralelo, por sua vez, tem um valor extremamente alto, que chega a ser cinco vezes o valor de uma arma artesanal com as mesmas características.

Feitas sob demanda – e às vezes, sob medida – e atraindo cada vez mais o interesse de criminosos por conta do preço, as armas artesanais alimentam o mercado paralelo e passam a ser encontradas e apreendidas com mais frequência em operações policiais. O perfil das apreensões mostra que estocar grandes quantidades de armas artesanais não é prática muito comum. A maior parte das ocorrências registram a retirada de circulação de uma ou duas armas, mas, claro, há também grandes apreensões, como foi no caso do Papai Noel mineiro.

Em cerca de cinco anos, Minas Gerais apreendeu 276 submetralhadoras artesanais. É o Estado que registrou o maior número de ocorrências no período. O delegado Morais reconhece que o Estado é um polo produtor de armas e revela que denúncias anônimas e ações de inteligência são as principais formas que a polícia utiliza para chegar às fabriquetas ou aos criminosos que comercializam esses armamentos.

Em Minas Gerais, 276 submetralhadoras foram encontradas

Manuais e tutoriais na internet

Natália Pollachi, coordenadora de projetos no Instituto Sou da Paz, acredita que a dispersão de informações nas redes sociais sobre como é possível montar uma arma caseira é um dos fatores preponderantes para o aumento de ocorrências. Manuais, tutoriais e vídeos explicativos são facilmente encontrados na internet.

Armeiros amadores trocam experiências, dicas e informações sobre peças, tipos de solda e técnicas abertamente em fóruns e seções de comentários. A troca de conhecimento contribui para o aprimoramento na fabricação das armas. Em alguns casos, a diferenciação entre uma arma artesanal e uma industrial só se dá a partir de um trabalho de perícia.

“A gente vê bastante caso de (falsificação de) Bushmaster, que é uma marca dos Estados Unidos, e algumas armas que enganam até policiais. Então é uma arma artesanal em que o armeiro coloca essa marcação imitando o logo, e provavelmente consegue até vender essa arma como se fosse industrial, cobrando um preço maior, tentando simular a marca da arma”, comenta Pollachi.

Em um vídeo que ensina como fabricar peças e montar uma submetralhadora artesanal, é possível ver a interação de dois usuários: “Tem como mandar um tutorial mais explicado no ZAP??!”, que recebe como resposta um número de telefone e a promessa de um tutorial completo. No mesmo vídeo, há perguntas sobre a mola usada e pedidos sobre as especificações de cada componente e até uma propaganda de um concorrente: “Eu faço também e vendo. A minha é semiautomática, pente de 20 (tiros), com bala .22”.

Em outro vídeo do mesmo canal, o autor apresenta uma submetralhadora “Melhor que a Talrus (sic)”, em alusão à maior fabricante brasileira de armas, a Taurus. O armeiro explica os planos de aprimoramento do projeto, com a inclusão de travas. “Se Deus quiser vou concluir isso aí e vou lançar aí. Abrir uma fábrica, sei lá, às vezes aparece um barãozinho aí ou qualquer merda aí que tem um dinheiro aí e patrocina”, narra o autor.

Polícia diz que maioria dos ‘armeiros’ costumam fornecer armas a facções criminosas
Polícia diz que maioria dos ‘armeiros’ costumam fornecer armas a facções criminosas

Há vídeos e sites em diversos idiomas, hospedados em grandes plataformas, como YouTube, e também em blogs e fóruns.

A partir de denúncias, a Polícia Civil de Minas Gerais costuma notificar o Google pedindo a retirada de vídeos – mas reconhece que o poder de disseminação é muito maior do que o tempo hábil para combatê-los. Em sua política, o YouTube veda expressamente “publicar conteúdo cuja finalidade seja vender armas de fogo, instruir os espectadores sobre como produzir armas de fogo, munições e acessórios relacionados ou ensiná-los a instalar esses acessórios”.

Procurado, o Google informou que o YouTube recebe cerca de 400 horas de vídeo por minuto, e que o monitoramento diante desse volume de informações é um desafio. “Contamos com sistemas e revisão humana para todas as denúncias de conteúdos que violem nossas diretrizes”, disse o Google em uma nota. “Não há sistema perfeito, por isso dependemos desse feedback constante de nossos usuários para que possamos melhorar nosso serviço e nossas ferramentas”.

Possíveis soluções

O interesse em submetralhadoras artesanais aumentou nos últimos anos em razão de seu valor estratégico, tanto pelo custo mais baixo como pela potência desses armamentos, que pode representar uma vantagem em eventuais confrontos com as forças de segurança ou grupos rivais.

Para tentar coibir o crime, especialistas de segurança apontam duas direções: aumentar a investigação para identificar armeiros e fábricas de fundo de quintal e ampliar o monitoramento de redes sociais para impedir a disseminação de informações.

Foi assim que a polícia mineira chegou a Breno Miranda de Faria, considerado um dos maiores fabricantes de armas do Estado. Preso em outubro de 2018, ele costumava divulgar sua produção em redes sociais.

No sítio em que Faria foi preso, foram encontradas ferramentas para a fabricação de armamentos e munição e também armas com números de série e marcas falsas, desenvolvidas pelo armeiro. Pelo menos outros quatro casos semelhantes de fechamento de fábricas ocorreram no ano passado.

Fonte: BBC Brasil