Os Tikunas e o Ritual da ‘Moça Nova’


Por: Hiram Reis e Silva

Os Tikunas e o Ritual da ‘Moça Nova’

Por Cel Hiram Reis e Silva, 20 de outubro de 2009

Metidos nesses trajes festivos, os Tikunas executam suas monótonas danças, que se resumem num sapateado e no balanço do corpo de um lado para o outro, ao som de cantos e de instrumentos de percussão. (Henry Walter Bates)

– Um Jantar Especial

O Cacique Tikuna João Farias Filho, da Comunidade Feijoal, Alto Solimões, é um líder nato, exercendo sua liderança com muita sabedoria e bom senso. Lúcido e inteligente, está a par dos acontecimentos nacionais e internacionais sobre os quais discorre com fluência e conhecimento impressionante.

Desfrutamos de um jantar, muito especial, com o cacique e amigos Tikunas. O cacique, que é evangélico, encabeçou uma prece em agradecimento ao Senhor. Cerimoniosamente, sentados no chão, consumimos o delicioso jantar preparado pela tia do amigo Arsênio, funcionário da Funai. Durante a refeição, provoquei o Cacique para que nos relatasse algumas de suas lendas e costumes. Ele nos relatou como foi criado o Povo Tikuna e detalhes da festa da Moça Nova.

– Festa da Moça Nova

A Festa da Moça Nova, ou seja, da menina que se torna mulher, para os Tikunas é muito importante, pois eles consideram a fase da puberdade muito perigosa, período em que as jovens podem ser influenciadas por maus espíritos. O ritual tem por objetivo iniciar as meninas-moças na vida adulta e, como verificamos, é composto por eventos expressivos, como:

  • · Clausura – construção do local (turi) onde a menina ficará isolada;
  • · Convite – aos Tikunas de outros clãs;
  • · Pintura Corporal – da Moça Nova e dos convidados;
  • · Ornamentos – carregados de profundo significado;
  • · Mascarados – representando seres mitológicos;
  • · Músicas e instrumentos musicais – selecionados especificamente;
  • · Pelação – momento em que os cabelos da moça nova são arrancados;
  • · Purificação – representada pelo banho.

A partir da primeira menstruação, a menina é conduzida para um local reservado (turi), construído para este fim, com esteiras ou cortinados, sem aberturas a Este ou a Oeste, de acordo com o seu clã, onde permanecerá enclausurada por um longo período, podendo se comunicar somente com a mãe e a tia paterna. Neste período, receberá as orientações necessárias de caráter místico e profano para que possa conduzir com eficiência sua vida dali por diante. O objetivo desse procedimento é estabelecer uma nova família enquanto os parentes se encarregam de convidar os Tikunas de diversos clãs para o evento.

O pai, uma semana antes do evento, se dedica a estocar grande quantidade de caça e pesca, as quais serão ‘moqueadas para resistir até o dia da festa, ocasião em que será consumida grande quantidade de comida e ‘pajuaru.

Moquear – tornar seco, enxugar; assar a caça ou a pesca com o couro em um gradeado de madeira ou diretamente sobre as brasas. Após ser submetido a esse processo, o produto pode ser consumido até em uma semana.

Pajuaru – bebida inebriante feita da mandioca fermentada e azeda.

A cerimônia começa oficialmente com um brinde de pajuaru na casa do pai da moça. Os parentes e convidados pintam o corpo com jenipapo. A tia da moça traz feixes de fibras de palmeiras (babaçu, ‘buriti’ e tucum), que simbolizam a fertilidade, e serão utilizadas nas danças tribais. Durante o corte do tronco de envira, de onde se tira o material para tecer o cocar, os convivas entoam melancólicas cantigas, e o ‘curaca’ realiza rituais de pajelança para atrair os seres da floresta e alimentá-los.

Buriti (mauritia flexuoxa) – presente nas várzeas e margens dos Igarapés, a palmeira é conhecida como coqueiro-buriti, miriti, muriti, muritim, muruti, palmeira-dos-brejos, carandá-guaçu, carandaí-guaçu. Fornece a palha para cobrir cabanas e, do broto, tira-se a envira, fibra que serve para tecer redes, tapetes e bolsas.

Curaca – chefe temporal das tribos indígenas brasileiras.

Os mascarados surgem quando a moça sai da reclusão para a primeira pintura corporal pela manhã. As máscaras são confeccionadas de acordo com a realidade de cada comunidade e imitam entidades ou animais. Representam os espíritos demoníacos que, num tempo mítico, massacravam os Tikunas. Essas máscaras lembram à jovem índia que o perigo existe.

  • · Mawu – mãe dos ventos e dos morros;
  • · O’ma – mãe da montanha e da tempestade;
  • · Tôo – os micos;
  • · Yurwu – parente do demônio.

As senhoras de seu clã iniciam a pintura com um sabugo de milho que molham na tintura e passam pelo corpo da moça, de cima para baixo, em duas grandes linhas curvas, abertas, para fora, na frente e atrás. O rosto é pintado em linhas que cobrem a face e a testa. Depois de seca a primeira pintura, derramam tinta de jenipapo no corpo da moça espalhando-a com as mãos, escurecendo totalmente o tronco. O objetivo da pintura é criar uma nova pele que, ao ser removida naturalmente, carrega com ela todas as mazelas passadas, simbolizando o renascimento de uma nova fase. Por volta do meio-dia, as mulheres mais velhas, incluindo a mãe e a avó, vão até o turi colocar os adornos na Moça Nova e pintá-la. Cada um dos ornamentos tem uma preparação bastante elaborada e um significado muito especial:

Coroa de penas vermelhas de arara – as penas de arara vermelha representam o sol e têm poderes sobrenaturais já que, normalmente, é usada pelo curaca. A coroa é confeccionada com a fibra do ‘tururi’ e possui duas pontas das asas da arara. É colocada na testa da Moça Nova, de maneira a cobrir-lhe os olhos, para que ela não possa ver.

Ubuçu ou Buçu (manicaria sacifera) – palmeira com frutos em forma de cocos pequenos, da família das Palmáceas, abundante nas margens das várzeas e ilhas da Amazônia. A palha é utilizada por ribeirinhos na cobertura de casas. O cacho que pende da palmeira é protegido por um invólucro semelhante a um saco de material fibroso e resistente chamado de tururi.

Tanga Vermelha – feita pela avó ou pela mãe; deve ser pintada com folhas de ‘crajiru’, semente de ‘urucum’ ou com a fruta da ‘pacovan’. O vermelho representa a vida, o sangue; sobre essa tanga, a menina usa uma pequena tanga de miçangas coloridas.

Crajiru (arrabidaea chica) – as folhas trituradas, esmagadas em água, cozidas ou cruas, rendem uma tintura marrom ou enegrecida usada pelos Tikunas em pintura de vestuário e da face.

Urucum (bixa orellana) – seu nome popular tem origem na palavra tupi ‘uru-ku’, que significa ‘vermelho’. De suas sementes extrai-se um pigmento vermelho usado pelas tribos indígenas como corante e como protetor da pele contra os raios solares intensos.

Banana Pacovan (banana-chifre-de-boi, banana-comprida ou banana-da-terra) – são as maiores bananas conhecidas; chegam a pesar 500 g cada fruta e a ter comprimento de 30 cm. É achatada num dos lados, tem casca amarelo-escura, com grandes manchas pretas quando maduras; a polpa é consistente, de cor rosada e textura macia e compacta, sendo mais rica em amido do que açúcar, o que a torna ideal para cozinhar, assar ou fritar.

Colares – cruzados à altura do peito servem apenas de adorno. As penas de arara têm um significado especial, pois representam o Nutapá e o seu uso representa que somos feitos à imagem Dele.

Braçadeiras e perneiras – feitas de penas e fios, são colocadas nos braços e nas pernas.

Depois da colocação de todos os adornos, é a hora da terceira pintura. Os braços são enfeitados com penas coladas ao corpo. A substância colante, nas cores vermelha e azul, é feita de urucum e resina de madeira. Agora a Moça Nova pode, finalmente, sair do seu turi. E sua chegada à sala de festa ocorre de forma especial, dançando com pessoas da família, conduzida por alguém especialmente escolhido para essa tarefa. É um momento muito esperado por todos.

Juntam-se a eles muitos dos convidados e continuam dançando. Ao chegar à parte externa da casa, o condutor inclina a cabeça da moça nova para trás, fazendo com que o rosto dela receba a luz do sol, a mesma que ela tinha ficado sem ver durante a reclusão. Os convidados continuam dançando em volta da casa, de braços dados, em grupos de 4 a 6 pessoas, deslocando-se para frente e para trás.

A pelação significa renovação, mudança, pois a menina já se tornou moça. Ela deve retirar todo o cabelo para renovar-se e redimir-se das faltas cometidas, e para ser incentivada a assumir uma postura de pessoa adulta. O processo de retirada dos cabelos é manual, sendo arrancados em pequenas mechas. A Moça Nova é sentada sobre um tapete de palhas no centro da sala enquanto, ao seu lado, todos os participantes da festa dançam, tocam instrumentos e bebem pajuaru. A Moça Nova também bebe o pajuaru antes da pelação.

Os adornos são retirados e os mais velhos começam a retirar o cabelo da Moça Nova. Vão retirando as mechas e entregando ao tio ou ao avô dela. Durante a pelação, explicam-lhe as razões do ritual, invocando a história do seu povo. Explicam que, para se tornar uma nova pessoa, para iniciar uma nova vida como adulta, é preciso que o corpo passe pelo sofrimento que ela está passando. O ritual não é só para garantir a limpeza do corpo para entrar na vida adulta, mas também uma homenagem às entidades sobrenaturais.

Eventualmente, o couro cabeludo pode ser preparado para que a moça não sinta tanta dor. Uma semana antes da festa, tira-se a casa da ‘tucandeira, faz-se uma pasta com os filhotes e as formigas que é colocada na cabeça da Moça. Esta técnica vai diminuir a dor e facilitar a retirada dos cabelos.

Tucandeira (paraponera clavata) – inseto himenóptero classificado na grande família dos formicídeos, subfamília das poneríneas. De cor preta, chega a medir 25mm de comprimento. É conhecida como tocandira, tucanaíra, formiga-agulhada, formiga-cabo-verde, formiga-de-febre, formigão e outros nomes. Habitante da selva, a tocandira constrói ninhos subterrâneos na base das árvores, cujas copas utiliza para forragear. As picadas causam manchas e calombos na pele, mal-estar generalizado e vômitos.

A última mecha de cabelo é tirada pela pessoa escolhida, podendo ser o tio ou o avô, ou uma pessoa idosa. Depois de concretizada a pelação, os adornos são recolocados, e o tio ou avô dão algumas voltas pelo interior da casa com a Moça Nova. A festa dura três dias e três noites e os participantes dançam e batem tambores e repetem o ritual da bebida diversas vezes. A bebida é servida na mesma cuia para todos.

No final da festa, o turi é destruído e a Moça Nova é conduzida para um Igarapé ostentando toda a decoração corporal. A ornamentação é retirada e ela mergulha dando duas voltas em torno de uma flecha fincada no Igarapé. O ritual tem o objetivo de preservá-la dos perigos da vida. Depois do banho, o cerimonial é considerado concluído. Ela vai para casa se alimentar e descansar. Quando acordar, ela irá colocar um lenço branco na cabeça que só deve ser retirado quando o cabelo crescer.

Solicito Publicação

Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva

Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)

Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS)

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional

Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

E-mail: hiramrs@terra.com.br

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