Análise Geopolítica: a crise na Venezuela

Prof. Dr. Edgar Indalecio Smaniotto[i]

Estamos em meio a uma crise geopolítica na América do Sul, envolvendo a Venezuela, atualmente sob o comando do presidente Nicolás Maduro, presidente da Venezuela desde 2013, reeleito em 20 de maio de 2018, para um segundo mandato de seis anos, com abstenção de cerca de 54 por cento dos eleitores venezuelanos, a reeleição é contestada pelos opositores do regime.

No decorrer do acirramento das disputas entre o governo bolivariano e a oposição, intensificada após a morte de Hugo Chávez e a eleição de Nicolás Maduro, quase toda a oposição foi presa, exilada ou mesmo proibida de concorrer às eleições. Nesse cenário surgiu como líder oposicionista o deputado Juan Guaidó de 35 anos, figura inexpressiva até então, mas que soube agora aproveitar do momento político e se projetar como líder nacional da oposição.

Nesta quarta-feira, 23 de janeiro de 2019, em meio a protestos civis, que começaram no dia 21 e já resultaram, dependendo da fonte entre 13 e 26 mortos, o deputado líder da Assembleia Nacional, Juan Guaidó se declarou presidente interino da Venezuela. Dando, assim, início a uma crise não apenas interna, mas também geopolítica.

Previsivelmente Rússia, China e Cuba declararam apoio ao governo Maduro, mas não foram os únicos, Bolívia, México e Turquia também declararam apoio ao regime vigente.

 

A Rússia tem contratos de fornecimento de armas para a Venezuela em um montante de 11 a 20 bilhões de dólares, concedeu ao governo venezuelano 17 bilhões em empréstimos, também pretende investir 6 bilhões em infraestrutura petroleira e 1 bilhão em infraestrutura de mineração; a empresa russa Rosneft controla 40% de 5 campos de petróleo e 49,9% da Citgo (subsidiária da PDVSA nos EUA), já a russa Gazprom tem 40% de dois campos de gás[ii].

 

Os russos também pretendem instalar fábrica do famoso fuzil Kalashnikov AK-47 na Venezuela, bem como instalar uma base militar russa em Puerto Cabello (território venezuelano)[iii].

 

Em reunião do Conselho de Segurança da ONU, no dia 26 de janeiro, o embaixador russo Vassily Nebenzia declarou “a Venezuela não representa uma ameaça para a paz e a segurança. O que representa uma ameaça para a paz é a tentativa de Washington de orquestrar um golpe de Estado”[iv]. Se referia ao apoio dos EUA a Juan Guaidó.

 

A China, por sua vez, concedeu 62 bilhões de dólares em empréstimos para a Venezuela desde 2008, empresas chinesas têm participações minoritárias na PDVSA, também forneceu 8 cargueiros Y-8, sistemas de radar e 24 treinadores K-8 ao governo venezuelano[v].

 

China e Rússia, portanto, têm interesses econômicos importantes na Venezuela, e possivelmente não abandonaram o governo de Maduro à própria sorte.  Dificilmente russos ou chineses (principalmente) mobilizarão tropas para lutar na Venezuela, mas apoio diplomático e possivelmente financeiro, esses países vão conceder a Maduro, mesmo que não venham a participar de operações bélicas.

 

A União Europeia, ONU, França, Portugal e Uruguai apoiam uma nova eleição, supervisionada, como caminho para a crise no país sul-americano. Não reconheceram o governo de oposição, mas também não apoiam Maduro e preferem uma saída por vias eleitorais. O que, na verdade, seria a melhor saída para a atual crise.

 

Espanha, França, Alemanha, Reino Unido e Portugal no sábado 26 de janeiro, deram um ultimato ao governo Maduro, ou este convoca eleições em oito dias, ou vão reconhecer o governo oposicionista de Juan Guaidó. Em resposta, o chanceler venezuelano, Jorge Arreaza, na sessão extraordinária do Conselho de Segurança da ONU, realizado também no sábado (26 de janeiro), declarou “A Europa está nos dando oito dias para que? De onde vocês tiraram que têm autoridade para dar prazos ou ultimatos a um povo soberano? Como lhes ocorre tal ação de ingerência e diria até infantil? Ninguém nos vai dar prazos, nem vai dizer se fazemos eleições ou não. Dediquem-se a seus assuntos”[vi], finaliza o chanceler.

 

Declararam apoio a Juan Guaidó: EUA, Brasil, Argentina, Colômbia, Peru, Chile, Paraguai, Equador, Panamá, Costa Rica, Honduras, Canadá, Guatemala, Espanha e Reino Unido. Aqui o peso do Brasil é enorme, qualquer ação contra o governo Maduro, mesmo diplomática, era contrária à geopolítica do governo PT, agora se torna adequada à geopolítica do governo Bolsonaro.

 

O secretário geral da Organização dos Estados Americanos também declarou apoio a Guaidó, bem como  Grupo de Lima. Este grupo foi formado em 8 de agosto de 2017, na capital do Peru, Lima. O grupo reune chanceleres de 12 países (Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru), firmaram o documento conhecido como Declaração de Lima, que postula “a restauração da democracia naquele país através de uma saída pacífica e negociada”.

 

Já, internamente, Guaidó conta apenas com o apoio da Assembleia Nacional e  do Tribunal Supremo de Justiça (no exílio). Maduro por sua vez conta com o apoio do Tribunal Supremo de Justiça, do Conselho Nacional Eleitoral, da Assembleia Constituinte, da PDVSA (Petróleos de Venezuela) e principalmente das Forças Armadas Venezuelanas[vii].

 

Sobre a população venezuelana em si, ainda é uma incógnita, o chavismo, mais do que Maduro em si, ainda conta com muito apoio. Mas a crise econômica provoca a revolta entre parte da população. A inflação chega a 1.000,000%, faltam produtos básicos e 3 milhões de venezuelanos já abandonaram seu país em busca de sobrevivência[viii].  Outros 5.000 abandonam o país diariamente[ix]. Uma situação insustentável!

 

Para aqueles cidadãos que possuem o “carnê da pátria”, que atesta a fidelidade ao governo, é possível adquirir bens, como uma cesta básica. A últimas, entregues em 25 de janeiro, surpreenderam alguns por conterem carne e salsicha, quando o normal é ter apenas “farinha, café, leite em pó, azeite” entre outras coisas. Aqueles que se identificam com a oposição não tem o mesmo direito, então não recebe nem a cesta básica[x]. Um alerta do perigo de governos que ao invés de tratar todos como cidadãos, procuram dividir o país entre nós e eles. Não importa a ideologia, isto nunca acaba bem.

 

Não se tem certeza também se existem grupos dentro das forças armadas venezuelanas que poderiam desertar do governo Maduro em apoio a Guaidó. Sem apoio de parte das forças armadas, caso elas continuem leais a Maduro, o governo interino de Guaidó não terá futuro, a não ser como um ato de desestabilização permanente do governo, mas sem efetivamente ser capaz de destituir o governo venezuelano[xi]. Para conseguir apoio das forças armadas Guaidó promete anistia geral a ex-militares que passarem para o lado de seu governo interino[xii]. Medida inteligente, mas que deveria ser estendida também a funcionários civis, assim ele conseguiria a adesão de membros de alto escalão do governo, que descontentes, mas com medo de retaliação de um governo de oposição, acabariam não se revoltando contra Maduro.

 

Entretanto, como alerta o professor Orlando Pérez, em depoimento na Folha de São Paulo “Os militares estão tão profundamente envolvidos com o regime que não podem dissocie-se dele”[xiii], lógico que talvez nem todos os militares podem estar tão comprometidos com o governo a ponto de não serem mais capazes de apoiar uma transição democrática. De qualquer forma, o caso da Venezuela é um alerta para outras nações dos limites que deve existir entre o governo civil e as forças militares, para assegurar a democracia.

 

Uma revolta da população civil é incerta, e será rapidamente esmagada sem apoio de parte das forças armadas. Caso civis armados e uma parte pequena das forças armadas decidam por uma ação armada, ao invés de um rápido golpe de Estado e a substituição do governo vigente, pode-se ter o início de uma guerra civil, principalmente se grupos antimaduro tiverem apoio dos Estados Unidos.

 

Nesse cenário pode-se visualizar duas alternativas, uma Líbia em que o governo cai relativamente rápido, ou se tem o início de uma guerra civil longa, como na Síria, com resultados imprevistos.

 

A Rússia, apesar da retórica, não tem condições de deslocar tropas ou aviões para agirem na Venezuela, como ocorreu na Síria, mas pode contribuir com consultores e armamento. A China, que tradicionalmente não se envolve em questões militares fora de seu entorno geopolítico, poderia contribuir financeiramente.

 

É incerto se Donald Trump se aventuraria em uma campanha militar de grandes proporções na Venezuela. Se obtiver uma vitória rápida, isso seria uma grande conquista para o presidente americano, que poderia até lhe garantir uma reeleição. Mas, uma guerra civil prolongada pode levar a um atoleiro de recursos e homens em um cenário de guerra na selva, um terreno que lembra a guerra do Vietnam.

 

É pouco provável, por enquanto, uma aventura militar assim, mas não impossível.    Os  norte–americanos podem querer o apoio do Brasil, mas fora o apoio diplomático, é incerto que o Brasil se aventure também em uma guerra na Venezuela. Apesar da retórica mais beligerante do presidente e do ministro das relações exteriores, o vice-presidente, General Mourão, se colocou contrário a uma intervenção de tropas brasileiras na Venezuela. Para Mourão “não é de nossa política externa intervir nos assuntos internos de outros países”[xiv], ele está certo, e como general, certamente representa o pensamento de setores importantes das forças armadas brasileiras. A Colômbia também anunciou não estar interessada em conceder aos EUA bases militares para ataques ao território venezuelano[xv], o que dificultaria um ataque por parte desse país ao território venezuelano.

 

As forças armadas brasileiras são plenamente capazes de derrotar as forças armadas venezuelanas, nossos soldados são preparados para guerra na selva, e apesar da força aérea venezuelana contar com caças Sukhoi-30, superiores aos brasileiros, pelo menos até o início da entrega dos Gripen NG em 2022. A Venezuela também dispõe de dezesseis aviões de combate F-16 A/B, o Brasil, mesmo com uma força tecnologicamente inferior em aviões de combate, tem à sua disposição um número maior de vetores aéreos de combate: 48 F-5EM/Tiger II, 15  A-1A  e 90 A-29 A/B Super Tucano. Destaco que os equipamentos supracitados estão dispostos mediante o número correspondente ao inventário militar, a disponibilidade e a capacidade operacional de cada um não estão consideradas neste artigo, servem apenas para ilustrar a dimensão das forças e seus equipamentos.

 

Porém, o maior desafio em uma guerra área na Venezuela viria dos sofisticados mísseis S-300 (baterias antiaéreas), mas isso é um fator rapidamente contornável, principalmente devido à presença da força aérea norte-americana, que destruiria a força aérea venezuelana e suas baterias antiaéreas em dias, se tanto.

 

A Marinha Venezuela também não é um grande desafio, conta com dois velhos submarinos, fragatas e navios-patrulha. Bem inferior à Marinha Brasileira, que dispõe de nove submarinos, um porta-helicóptero, 8 fragatas da Classe Niterói, 2 da Classe Greenhalgh, 2 corvetas da Classe Inhaúma, 4 corvetas da Classe Tamandaré e uma da Classe Barroso, o NDM Bahia, navio-anfíbio de multipropósito, isso para ficarmos nos navios de combate mais importantes.

 

Em matéria de forças terrestres, a superioridade brasileira é enorme em tanques, carros de combate e artilharia autopropulsada. Já em matéria de homens, o Brasil é o país com as Forças Armadas mais numerosa, são 366.614 militares; a Venezuela dispões de 365.315 efetivos. Com uma população muito maior, 210 milhões, enquanto a da Venezuela é de cerca de 32 milhões, o Brasil poderia modelizar um efetivo de reservistas muito superior.

 

Logicamente a Venezuela (mesmo com apoio da Rússia e China, e até de eventuais tropas de Cuba) seria derrotada em uma guerra em que tivesse de enfrentar EUA e Brasil, mas uma guerra não é apenas questão de superioridade militar.

 

A população brasileira, por exemplo, se encontraria dividida sobre tal empreitada, se fosse uma intervenção rápida, isso poderia ser contornado. Se falarmos em uma guerra prolongada, com caixões chegando do front, a população brasileira pode rapidamente ficar contra tal intervenção, até porque, não temos uma tradição de intervenções militares na região, desde o século XIX.

 

Outro fator, são os gastos e possíveis efeitos negativos de uma guerra contra a Venezuela na economia brasileira. Por isso, apesar da retórica, tudo indica que uma guerra ainda é um cenário pouco provável, e uma guerra com envio de tropas por parte do Brasil, mais improvável ainda. Não afirmamos ser impossível, mas improvável.

 

O cenário mais provável é de que a oposição ao governo venezuelano, com a ajuda dos EUA, e agora com a legitimidade dada também pelo governo brasileiro, continue em uma campanha de desgaste contínuo do governo Maduro, até que esse entre em colapso.

 

Certamente, oposição e o governo americano esperam o melhor cenário possível para ambos, ou seja, que militares descontentes deem fim ao governo Maduro, empossem Guaidó, e ele convoque novas eleições. Uma guerra é sempre um cenário imprevisível, e não importa o vitorioso, poderia trazer graves consequências políticas e econômicas para os envolvidos.

 

O governo Maduro não é um regime democrático, como bem aponta Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no indispensável “Como as democracias morrem” (Rio de Janeiro: Zahar, 2018), o regime alterou a composição da suprema corte, fechou órgãos de impressa oposicionista, acabou com o limite de mandatos presidenciais, nega a legitimidade da oposição, tolera a violência contra opositores e restringi as liberdades civis de oposicionistas. O governo Maduro é uma autocracia.

 

A grande questão agora é como fazer uma transição democrática, sem guerra, na Venezuela. Coloco aqui um caminho, para finalizar este texto.

 

Uma forma de evitar uma guerra civil, uma intervenção estrangeira ou um longo declínio do governo Maduro, todos penalizando a população civil, seria uma intervenção da ONU. Quando eu cursava meu primeiro ano de faculdade em 1999 acompanhei com interesse o caso de Timor Leste, ex-colônia portuguesa nos limites entre Ásia e Oceania, ocupada pela Indonésia. Li na época o livro “Timor Leste: este país quer ser livre” (São Paulo: Martin Claret, 1997), e acompanha as notícias diariamente em jornais.

 

A ONU na época criou uma força internacional para intervir no Timor Leste a Missão das Nações Unidas em Timor-Leste ou UNAMET, sob comando dos australianos, que administrou a região e assegurou eleições livres e democráticas. O mesmo veio a ocorrer também no Haiti, com a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti ou MINUSTAH,  agora sob comando de tropas brasileiras, entre 2004 e 2017.

 

Apesar de serem cenários diversos, uma saída semelhante poderia ser pensada para a Venezuela. O governo brasileiro poderia demostrar seu compromisso com a democracia na América do Sul, e ao mesmo tempo com sua tradição não belicista nas relações internacionais, se levasse ao Conselho de Segurança da ONU semelhante proposta. Com a experiência obtida no Haiti poderia inclusive comandar a transição. Seria uma vitória política para o governo Bolsonaro, tanto interna, como externamente, e um compromisso humanitário e não belicista.

 

O Brasil se projetaria internacionalmente, cumpriria um papel de estabilizar e evitar conflitos em seu entorno estratégico, dentro da lei internacional, e sem se envolver em conflitos bélicos que podem ser custosos demais em recursos e vidas.

 

Agora é esperar, e ver como se desenrolam os próximos acontecimentos.

[i]Filósofo, antropólogo e doutor em Ciências Sociais, membro da Associação Brasileira de Geopolítica (ASBRAGEO).

[ii] “Intervenção na Venezuela seria ‘banho de sangue’, diz Rússia. Folha de São Paulo. Sexta-feira, 25 de janeiro de 2019. p. A14.

[iii] GODOY, Roberto. Russos reforçam ajuda militar ao chavismo. O Estado de São Paulo. Sábado, 26 de Janeiro de 2019. p. A10.

[iv] “Países europeus dão ultimato a regime para convocar eleições”. Folha de São Paulo. Domingo, 27 de janeiro de 209. p. A12.

[v] “Intervenção na Venezuela seria ‘banho de sangue’, diz Rússia. Folha de São Paulo. Sexta-feira, 25 de janeiro de 2019. p. A14.

[vi] “Países europeus dão ultimato a regime para convocar eleições”. Folha de São Paulo. Domingo, 27 de janeiro de 209. p. A12.

[vii] “Bolsonaro se diz otimista, mas não há consenso no governo sobre Venezuela”. Folha de São Paulo, sexta-feira, 25 de janeiro de 2019. p. A16.

[viii] LIRIO, Sergio. A Venezuela eriçada. Revista Carta Capital, nº 1039, 30 de janeiro de 2019. pp. 10-11.

[ix] “Maduro amplia distribuição de comida em busca de apoio popular”. Folha de São Paulo. Domingo, 27 de janeiro de 209. p. A12.

[x] “Maduro amplia distribuição de comida em busca de apoio popular”. Folha de São Paulo. Domingo, 27 de janeiro de 209. p. A12.

[xi] “Cúpula do Exército declara lealdade a Maduro”.  Folha de São Paulo, sexta-feira, 25 de janeiro de 2019. p. A12.

[xii] “Guaidó desafia Maduro e põe anistia a militares entre primeiras medidas”. O Estado de São Paulo. Sábado, 26 de Janeiro de 2019. p. A10.

[xiii] ROSSI, Clóvis. Venezuela, ante o Precipício. Folha de São Paulo. Domingo, 27 de janeiro de 209. p. A14.

[xiv] LIRIO, Sergio. A Venezuela eriçada. Revista Carta Capital, nº 1039, 30 de janeiro de 2019. pp. 10-11.

[xv] “Colômbia não planeja conceder a EUA bases para invasão da Venezuela”. Disponível em: https://br.sputniknews.com/americas/2019012613186841-colombia-eua-venezuela-base-militar-planejar/. Postado as 07:50 de 26.01.2019.

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