URÂNIO EMPOBRECIDO NA PRODUÇÃO DE MUNIÇÕES CINÉTICAS PARA CARROS DE COMBATE: ANÁLISE DE SEU USO POTENCIAL

Imagem ilustrativa

Por ANDERSON GOMES DE JESUS *

INTRODUÇÃO

O Brasil faz parte da comunidade de apenas 12 países que possuem capacidade de enriquecimento de urânio em suas diversas etapas. Os demais países reconhecidos pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) são China, Estados Unidos, França, Japão, Rússia, Alemanha, Inglaterra, Holanda, Índia, Paquistão e Irã. Tal feito é o resultado de mais de cinquenta anos de esforços na pesquisa e desenvolvimento de tecnologias autônomas que se mostraram revolucionárias. O início da construção da unidade de conversão das Indústrias Nucleares do Brasil (INB) em Resende – Rio de Janeiro busca finalizar a última estrutura necessária para que todo o ciclo de enriquecimento seja feito em solo brasileiro.

A demora na construção da unidade não se deu por falta de capacidade tecnológica, mas sim por que a demanda anual de apenas duas usinas nucleares não tornava a construção dessa unidade economicamente viável. Quando a usina nuclear de Angra 3 entrar em operação, a demanda por combustível nuclear será aumentada e todo o ciclo sofrerá impacto, desde a lavra do minério de urânio, hoje localizada no município baiano de Caetité, até a produção de resíduo sob a forma de urânio empobrecido. Este trabalho tem por objetivo lançar um olhar sobre a viabilidade técnica do uso desse resíduo na produção de munições cinéticas, com vistas a aumentar a letalidade dos carros de combate da família Leopard.

DESENVOLVIMENTO

1. O ciclo do combustível nuclear

O ciclo do combustível nuclear é o conjunto de etapas do processo industrial que transforma o minério de urânio, encontrado em estado natural, passando por sua utilização como combustível dentro de uma usina nuclear, até o reaproveitamento final. Contempla as operações de: mineração, conversão, enriquecimento isotópico, reconversão, fabricação do elemento combustível (EC), queima no reator, reprocessamento e tratamento dos rejeitos.

1.1. Mineração

A composição média do urânio é de: 99,283% em U-238, 0,711% em U-235 e 0,006% em U-234. E pode se apresentar sob a forma de diversos minerais como óxidos, silicatos e fosfatos (BRASIL, 2015b). São poucos os países do mundo com reservas significativas de urânio e o Brasil é um deles, conforme se pode ver na tabela 1.

Atualmente, a unidade da INB em Caetité – Bahia produz 800 toneladas de concentrado de urânio por ano, o que é suficiente para atender à demanda das duas usinas nucleares em operação mais a de Angra 3 (BRASIL, 2012).

1.2. Conversão

A conversão é o conjunto de operações físico- -químicas que permitem a transformação do urânio de concentrado de urânio, conhecido como “yellow cake”, em hexafluoreto de urânio (UF₆). Os processos de enriquecimento atuais usam urânio na forma de hexafluoreto de urânio nuclearmente puro. Apropriado porque o UF₆ é o único composto conhecido do urânio que se apresenta sob a forma gasosa a temperaturas moderadas (a partir de 56°C com pressão normal). À temperatura ambiente, o UF₆ é sólido, o que facilita seu manuseio.

O flúor, por sua vez, possui apenas um isótopo estável e seu peso atômico é relativamente baixo, não prejudicando a separação dos isótopos de urânio. O “conversor” restitui ao cliente, sob a forma de UF₆, 99,5% do urânio recebido sob a forma de concentrado, e o produto deve obedecer às especificações do agente responsável pela etapa seguinte do Ciclo, o enriquecimento isotópico.

1.3. Enriquecimento isotópico

O processo de enriquecimento adotado pelo Brasil é a ultracentrifugação e se baseia na separação obtida por moléculas gasosas de ²³⁵UF₆ e ²³⁸UF₆ quando colocadas em uma turbina centrífuga, dotada de rotor de alta velocidade de rotação. As moléculas passam a girar com trajetórias diferentes, e o isótopo de urânio-235 tende a concentrar-se mais no centro, enquanto que o isótopo de urânio-238 fica mais próximo à parede do cilindro.

Duas tubulações de saída recolhem o urânio, sendo que numa delas segue o urânio que tiver maior concentração de isótopos 235, e na outra, o que tiver mais do isótopo 238 (chamado resíduo). Dessa centrífuga, o urânio é repassado para outra centrífuga e assim por diante, num processo em cascata. No final dessa cascata, o urânio com maior nível de enriquecimento (com 3,0% a 5,0% de urânio-235) é recolhido, enquanto que na base permanece o resíduo (com no máximo 0,3% de urânio-235) (BRASIL, 2015a).

1.4. Reconversão

Reconversão é o retorno do gás UF₆ ao estado sólido, sob a forma de pó de dióxido de urânio (UO₂). Após a reconversão, o UO₂ enriquecido é transformado em pastilhas que serão montadas nos elementos combustíveis para uso em reatores de potência.

Já o resíduo, o urânio com baixo teor de enriquecimento ou urânio empobrecido, objeto deste trabalho, não é reconvertido e fica estocado em cilindros capazes de armazenar o equivalente a 12500 kg de UF₆ (8450 kg U), como pode ser visto na figura 1.

Assim, considerando a capacidade de produção da unidade da INB em Caetité de 800 toneladas por ano de concentrado de urânio, podem ser obtidos nesse mesmo espaço de tempo 112 toneladas de urânio enriquecido e 688 toneladas de urânio empobrecido.

1.5. Reprocessamento de rejeitos

No Brasil se pratica o chamado ciclo aberto que prevê a disposição do combustível. Diferente do ciclo fechado em que se admite o reprocessamento do urânio, os elementos combustíveis usados nas usinas nucleares de Angra 1 e 2 repousam em piscinas destinadas a este fim dentro dos prédios dos próprios reatores.

No reprocessamento, o objetivo é recuperar o urânio-235 não convertido e o plutônio formado como subproduto que podem ser utilizados como combustível. Um elemento combustível irradiado possui em sua composição: 92,6% urânio-238; 0,8% urânio-235; 1,2% de plutônio; e 5,4% de outros produtos de fissão.

Diferentemente do urânio empobrecido obtido no processo de enriquecimento isotópico, e que não necessita de cuidados adicionais em seu transporte e armazenamento por ser um emissor alfa (α), o urânio empobrecido oriundo de reprocessamento possui em sua composição impurezas extremamente perigosas e cujo decaimento radioativo tem por característica a emissão de radiação gama (γ).

2. Radiações nucleares

Radiação nuclear é o nome dado às partículas ou ondas eletromagnéticas emitidas pelo núcleo durante o processo de reestruturação interna em busca de uma maior estabilidade. Essas radiações podem ser de três tipos: alfa (α), beta (β) ou gama (γ). 2.1. Radiação α Radiação alfa (α) são partículas constituídas de 2 prótons e 2 nêutrons (núcleo de ⁴He).

Em geral os núcleos alfa-emissores tem um número atômico elevado e, para alguns deles, a emissão pode ocorrer espontaneamente. Essas partículas, por terem massa e carga elétrica relativamente maior, são facilmente detidas por um obstáculo; elas em geral não conseguem ultrapassar sequer as camadas externas de células mortas da pele de uma pessoa, por exemplo, sendo assim praticamente inofensivas. Entretanto, podem penetrar no organismo através de um ferimento ou por inalação provocando, nesse caso, lesões graves.

2.2. Radiação β

Radiação beta (β) é o termo usado para descrever elétrons de origem nuclear, carregados positiva (β+) ou negativamente (β-). Sua emissão constitui um processo comum em núcleos de massa pequena ou intermediária que possuem excesso de nêutrons ou de prótons em relação à estrutura estável correspondente. Nessas radiações, os efeitos são superficiais, podendo chegar a alguns milímetros dependendo da energia da radiação.

2.3. Radiação γ

Quando um núcleo decai, são formados núcleos residuais fora da configuração de equilíbrio. Assim, para atingir o estado de equilíbrio, é emitida a energia excedente sob a forma de radiação eletromagnética, denominada radiação gama (γ). Os fótons de radiação gama constituem as radiações mais penetrantes e causam danos biológicos diferentes conforme a dose total, energia e tipo de irradiação.

3. Carros de Combate Leopard 1

Os Carros de Combate Leopard 1 A5 BR compõem a espinha dorsal da Cavalaria do Exército Brasileiro. Eles possuem características gerais muito similares àquelas esperadas da VBC EE-T1 P1 Osório que se planejava adquirir para a Força Terrestre. O Leopard 1 A5 BR é o resultado de um estudo originado no início dos anos 80 com a finalidade de manter o poder de combate e a capacidade de sobrevivência do Leopard 1 para além do ano 2000.

Assim sendo, o Carro de Combate, originalmente desenhado para combater os T-55 e T-62 soviéticos, teve que ser redesenhado para fazer frente aos novos T-64B, T-72B, T-72M1 e T-80B. Para atingir esta meta foram melhoradas: a capacidade de combater à noite e com mau tempo; de disparar em movimento contra alvos também em movimento; de calcular com exatidão a solução de tiro, com a velocidade e a precisão necessárias para abater um grande número dos compactos blindados russos (BERALDI, 2006).

Nessa repotencialização, uma nova torre foi desenvolvida, maior que aquela das versões anteriores, para abrigar todos os novos sistemas e a munição extra. Esta nova torre vem previamente preparada para aceitar o canhão Rheinmetall L44 de 120mm do Leopard 2, porém, essa atualização mostrou-se econômica e tecnicamente desinteressante após a conversão de apenas um veículo para o padrão 1A6 no ano de 1987, optando-se pela aquisição de mais veículos Leopard 2 pelo Exército da Alemanha Ocidental (BERALDI, 2006).

Outra atualização essencial para cumprir os novos requisitos foi a introdução da munição perfurante de calço descartável estabilizada por aletas (Armor Piercing Fin Stabilized Discarding Sabot – APFSDS), para fazer frente às novas blindagens russas. Sendo esse o objeto deste trabalho.

3.1. Poder de fogo

No tocante ao poder de fogo, o canhão L7 A3 empregado pelo Leopard 1 A5 BR mantém boa capacidade de combate até os dias de hoje, principalmente se equipado com as munições mais atuais disponíveis no mercado.

Para fins de comparação, a tabela 2 mostra as principais munições APFSDS nos calibres 105mm e 120mm disponíveis atualmente, onde se pode observar o desempenho real de cada uma delas. Com relação ao item penetração, as munições 105 mm foram disparadas por canhão da família L7 e as de 120 mm por canhão da família L44 com os alvos colocados à distância de 2.000 metros.

Já a medida RHAe (Rolled Homogeneous Armor Equivalent) foi criada para determinar a resistência de uma blindagem composta à penetração, comparando esta blindagem composta com uma blindagem homogênea (aço puro). As munições cinéticas em uso atualmente pelo Exército Brasileiro são as constantes na tabela 3, sendo apenas a DM63 (designação alemã da munição M-426 de fabricação israelense) disponível para aquisição uma vez que os outros modelos em estoque tiveram sua fabricação descontinuada.

Nota-se que o ganho em desempenho quando se compara a melhor munição APFSDS de 105mm disponível no Exército Brasileiro frente a melhor munição no mesmo calibre, porém com penetrador de urânio é de 22%. Isto, quando considerado o cenário sul-americano, não justifica a opção pelo penetrador de urânio, a menos que se considere como ameaça os Leopard 2A4 chilenos e os T-72 B1 venezuelanos.

No caso de serem levados em conta Carros de Combate mais modernos, pode-se fazer necessária uma troca de munição. A tabela 4 mostra a resistência à penetração em RHAe da blindagem dos Carros de Combate mais modernos encontrados na América do Sul.

A tabela 5 mostra a resistência à penetração em RHAe da blindagem dos Carros de Combate mais avançados em nível mundial. Assim, se estabelece uma comparação entre a capacidade de penetração das munições disponíveis no âmbito do Exercito Brasileiro e a capacidade de resistência à penetração dos carros de combate de outros países.

CONCLUSÃO

Muito se tem dito a respeito dos supostos perigos no manuseio das munições APFSDS com penetrador de urânio. Essas munições, se fabricadas a partir do resíduo do enriquecimento isotópico, não representam perigo para as tripulações dos Carros de Combate uma vez que o urânio-238 é um emissor α. Porém, quando se refere à proteção do meio ambiente, a dispersão de partículas de urânio no terreno, além de contaminar o solo, pode também contaminar cursos d’agua e lençóis freáticos, levando à inalação ou até mesmo ingestão desse material que tem características cumulativas.

Já quanto a seu uso, as munições APFSDS com penetrador de urânio empobrecido costumam ser mais eficazes, principalmente quando se considera a possibilidade de um embate contra Carros de Combate modernos. A fábrica de Juiz de Fora da Imbel já produziu penetradores de tungstênio no calibre 90mm no passado, ou seja, o desafio de produzir um penetrador de 105mm não é tarefa distante da realidade.

Além disso, toneladas de urânio empobrecido encontram-se seguramente acondicionadas em cilindros no pátio da Fábrica de Combustível Nuclear da INB em Resende – Rio de Janeiro. Assim, o desenvolvimento de penetradores de urânio para munições APFSDS no calibre 105mm para equipar os Leopard 1 A5 BR do Exército Brasileiro apresenta mais vantagens do que desvantagens na medida em que: aumenta a letalidade do Carro de Combate em questão, tornando-os capazes de fazer frente a seus opositores modernos; tal iniciativa seria de grande importância para alavancar a pesquisa e o desenvolvimento no setor nuclear tendo como resultado um produto de defesa de elevado valor agregado e com demanda no mercado internacional; e reduz a quantidade de subproduto armazenado, gerado a partir do ciclo do combustível nuclear.

REFERÊNCIAS

BERALDI, Alexandre. Carros de Combate Leopard I no Exército Brasileiro. Sistemas de Armas. 2006. Disponível em: . Acesso em: 25 Out. 2017.

BRASIL. Escola de Material Bélico (EsMB). Leopard 1: generalidades sobre as munições usadas pelo EB. Forças Terrestres. Reproduzido de Informatbel. 2011 Disponível em: Acesso em: 25 Out. 2017

_______. INDUSTRIAS NUCLEARES DO BRASIL S.A. (INB). 2018. Disponível em: Acesso em: 30 Jun. 2018

_______. INSTITUTO DE ENGENHARIA NUCLEAR (IEN). Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia Nucleares. Enriquecimento Isotópico, Reconversão e Montagem do Elemento Combustível. Apostila. Rio de Janeiro: Acadêmica, 2015a.

Programa de Pós-Graduação em Ciência e Tecnologia Nucleares. Mineração, Tratamento Físico do Minério, Produção de Concentrados de Urânio e Conversão. Apostila. Rio de Janeiro: Acadêmica, 2015b.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG). Programa de Pós-Graduação em Ciências e Técnicas Nucleares. Ciclo do Combustível Nuclear. Apostila. Belo Horizonte: Acadêmica, 2012.

ESTADOS UNIDOS. United States Enrichment Corporation (USEC). USEC-651: Good Handling Practices for Uranium Hexafluoride. Revision 8. USA, 1999.

NOE, Kenny. Kenny’s Hole in Cyberspace. 2002. Disponível em: Acesso em: 20 Ago. 2018

VALENTE, Gabriel Vieira. Eficiência balística terminal das munições de emprego da VB CCC Leopard 1 A5 BR contra os principais carros de combate da América do Sul. Monografia (Bacharel em Ciências Militares) – AMAN, Resende, 2016.

Sobre o Autor: O autor é 1º Tenente Técnico Temporário (Magistério Química). Licenciado em Química pela UFRJ (2004). Bacharel em Química pela UNIGRANRIO (2006). Mestre em Ciência e Tecnologia Nucleares pelo Instituto de Engenharia Nuclear (IEN) (2017). Atualmente é professor de química aplicada da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN).

Fonte: AÇÃO DE  CHOQUE  CI Bld

1 Comentário

  1. Pelo que entendi as nossas usinas nucleares não fazem reprocessamento de urânio enriquecido, para com isso não ter acesso ao plutônio?

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