Kemal Atatürk: “Ao Ocidente pelo Oriente”

turkiyeEle sabia perfeitamente que mudanças tão radicais não poderiam ser introduzidas pelos procedimentos da democracia ocidental

José Murilo de Carvalho (*)

Para um brasileiro em visita à Turquia, o peso da História é esmagador. São grandes civilizações sucedendo-se umas às outras e deixando suas marcas nos monumentos e nas escavações arqueológicas datadas de até 5 mil anos atrás. É Troia, são os templos, anfiteatros, arenas, monumentos, banhos greco-romanos, é o hospital de Galeno, a Biblioteca de Celso, a Santa Sofia bizantina, a Mesquita Azul otomana, para citar uns poucos exemplos. Mas quero saltar alguns séculos para falar de Mustafá Kemal Atatürk, cujo monumental mausoléu, inaugurado em 1953, é uma das atrações de Ancara. Seu nome está por todo lado, em cidades, ruas, pontes, escolas, instituições e na memória do povo. O sobrenome, adotado depois da guerra de independência, representa uma realidade: “Pai dos turcos.”

Não era para menos. Dificilmente um homem terá marcado tão profundamente a história de um país como este macedônio nascido em 1881. O Império Otomano, após a tomada de Constantinopla em 1453, expandira-se, de sua base na Anatólia, por todo o Mediterrâneo, até a Argélia, no Norte da África, entrara pela Europa nos Bálcãs e cobria toda a Palestina. A derrota da Alemanha, com quem o sultão se aliara, na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), implodiu o império, que se tornou repasto das potências vencedoras, sobretudo Grã-Bretanha, França e Itália. O desmoronamento do Império ameaçava a existência do próprio coração da Turquia, a Anatólia, agora invadida pela Grécia com o apoio da Grã-Bretanha

Foi nessa conjuntura dramática que um general de 38 anos chamado Mustafa Kemal concebeu e perseguiu com pertinácia quase fanática a ideia de construir o estado-nação turco sobre as ruínas do Império Otomano. Em 1919, ele e seus aliados construíram um Exército na Anatólia para lutar contra a invasão grega, as potências aliadas que tinham ocupado Istambul, e o governo hesitante do sultão. A luta durou até 1923, deixando centenas de milhares de mortos. Afinal, o sultão abdicou e a Grande Assembleia Nacional, dominada pelo Partido do Povo, proclamou a República da Turquia, com capital em Ancara, e elegeu Kemal presidente do novo regime.

Mas Kemal tinha planos muito mais amplos do que fundar um Estado turco independente: queria criar uma nação turca. Promoveu reformas quase impensáveis na centenária cultura otomana, provocando um terremoto cultural no país. Convencido de que o islamismo era o grande fator de atraso e que o Ocidente era o único modelo de modernidade, aboliu o califado, fechou as escolas religiosas, acabou com a xaria e promulgou um código civil ocidental, isto é, criou um Estado laico. Foi além: libertou as mulheres do véu e da dominação masculina, outorgando-lhes igualdade civil com os homens e direitos políticos de votar e ser votadas. Uma filha adotiva sua tornou-se piloto da aviação militar. Mandou que os homens trocassem o fez pelo chapéu. Em 1928, deu três meses para que se fizesse a troca do alfabeto árabe que, segundo ele, não se ajustava à língua turca, pelo latino. Tudo isso em cinco anos. Em 1935, adotou o calendário gregoriano e exigiu que os turcos adotassem um sobrenome. Ele próprio adotou o de Atatürk e abandonou o nome Mustafa, de origem árabe. Morreu aos 57 anos de idade em 1938, de cirrose hepática, causada por consumo imoderado de raki.

Kemal Atatürk sabia perfeitamente que mudanças tão radicais não poderiam ser introduzidas pelos procedimentos da democracia ocidental, que ele defendia, num país que nunca a praticara e onde inexistia uma cidadania ativa. Ele criou um partido político e a Grande Assembleia Nacional, mas agiu o tempo todo autoritariamente à moda de um sultão moderno. O governo era ele e a população assim o entendia. Buscou o Ocidente pela via do Oriente.

A ambiguidade de uma democratização introduzida ainda não desapareceu. A Turquia é hoje um país moderno, com 76 milhões de habitantes e com o 17º PIB do mundo. É uma república laica, parlamentar, em que o presidente é eleito pela população. É a melhor promessa que existe hoje de convivência entre o islamismo sunita (97% da população) e a democracia ocidental com as exigências desta última de liberdade de pensamento e de crença religiosa. No entanto, a manutenção do secularismo kemalista já exigiu, por quatro vezes, a intervenção das Forças Armadas, suas mais zelosas guardiãs. A tensão está presente no atual governo, comandado pelo primeiro-ministro, Recep Erdogan, no poder desde 2002, apoiado no Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), de simpatias islâmicas. Reação das Forças Armadas levou ao julgamento e prisão de vários generais sob a justificava de afastar os militares da política, mas com suspeitas de manipulação judicial e de influência no processo do influente imã Fethullah Gulen, residente nos Estados Unidos.

A pergunta que se pode fazer é se a Turquia ainda precisa da força de um sultão coletivo, as Forças Armadas, para consolidar a democracia nos moldes ocidentais, condição para a admissão, que ela deseja, à União Europeia. Ou se, ironicamente, a prática dessa democracia, sobretudo do sistema representativo, vai levá-la de volta à teocracia islâmica. Estaria o governo turco agindo como o anti-Atatürk, fazendo o percurso inverso, buscando o Oriente pela via do Ocidente?

(*)  José Murilo de Carvalho é historiador

Fonte: O Globo, Opinião, Página 15, Sexta-Feira, 21/03/2014  

2 Comentários

  1. A resposta é simples e fácil.
    A Turquia (os turcos e turcas) tem muito mais atração pela Europa e o Ocidente do que pelo Oriente. Tanto que as medidas radicais ocidentalizantes de Kamal Atatürk foram aceitas e assimiladas mesmo depois de sua morte.
    Tendo essa sensibilidade fica fácil de ver para quem a Turquia deve se virar de frente. E para quem deve virar as costas.
    E se suas FA têm sido conscientes desse fato, que continuem assim, e não deixem o time que vem ganhando ser mudado.
    Os fanáticos religiosos e idiotas que sejam tocados para escanteio.

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